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12-11-2010        Le Monde Diplomatique

Sindicalismo e precariedade

 

A Greve Geral de 24 de Novembro, convocada pelas duas centrais sindicais, a CGTP e a UGT, será um momento de protesto contra as medidas de austeridade e a favor do emprego, do Estado social e dos serviços públicos. Décadas de erosão da segurança do emprego e de flexibilização da legislação laboral colocaram dificuldades e desafios complexos ao sindicalismo. Mas isso só torna mais urgente juntar de forma solidária os trabalhadores, estejam eles em situação de emprego, precariedade ou desemprego, na construção de um futuro em que deixem de ser tratados por uma ordem económica mundial insustentável como «o factor trabalho». 

 

Compreende-se intuitivamente a existência de uma forte associação entre o aumento da precarização da força de trabalho e o decréscimo dos níveis de adesão e da capacidade de acção dos sindicatos. É mais problemático sustentar empiricamente a intensidade e o sentido deste nexo, na medida em que tal implicaria identificar uma variável independente que determinaria o comportamento de outra, dependente. A realidade é bem mais complexa e dialéctica do que isso, razão pela qual se opta por mapear as interacções existentes entre as transformações no contexto sociopolítico, identidades e subjectividades, com o sindicalismo e a sua (in)capacidade de lidar com estas.
 

(Pós-)Fordismo(s)
 

Enquanto «modo de regulação» e «padrão geral de organização social» , o fordismo significava um compromisso histórico entre capital e trabalho concretizado ao nível nacional e da empresa. Desenvolvem-se práticas estatais e contratuais de normalização – Estado-providência e arranjos institucionais tripartidos − que garantiam a previsibilidade e estabilidade, dirimindo conflitos, e o aumento sustentado do salário médio. A classe trabalhadora adquiria um novo estatuto, tendo a sua condição sido transformada, pela relação salarial, numa integração na subordinação . A conjugação do aumento dos salários com a difusão de um modo de vida e de modelos culturais associados ao consumo de massa completava o círculo virtuoso e assegurava a reprodução ampliada do capital.

O caso português assume contornos específicos relativamente aos países capitalistas avançados. O país assistiu, em poucas décadas, a um curto-circuito histórico em que diferentes modos de regulação social foram ensaiados num período curto de tempo: de Estado corporativo passou por uma transição para o socialismo, por uma regulação fordista e ainda por uma regulação neoliberal. Os sistemas de protecção social, mesmo antes de serem completamente concretizados, começaram a ser desmantelados .

O sindicalismo desenvolve-se também de forma assincrónica. Ascende em pleno regime autoritário e atinge o seu período áureo de mobilização na segunda metade da década de setenta, quando na Europa a concertação social tripartida era a regra. Nos anos oitenta (1984), assiste-se à institucionalização da concertação social. Mas tal verifica-se em contraciclo, quando os mecanismos de regulação macroeconómica entraram em crise, emergia o discurso neoliberal e o Estado procurava desregular e retirar-se do compromisso histórico de concertação social .

Os governos do partido Social Democrata (PSD), presididos por Aníbal Cavaco Silva, intervieram sobre duas áreas importantes da relação salarial após o 25 de Abril. Em primeiro lugar, a flexibilização da legislação laboral. Embora o «Pacote Laboral» tenha sido travado pela Greve Geral de 28 de Março de 1988 (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses [CGTP] e União Geral de Trabalhadores [UGT]), tal não impediu a aprovação posterior de nova legislação avulsa, no sentido de facilitar o despedimento e promover a «diversidade contratual» Esta situação criava as condições para uma crescente dualização do mercado de trabalho, em que o núcleo central da legislação laboral se mantinha intacto, mas cujas normas flexibilizadoras permitiam às empresas o recurso crescente a contratos precários facilitando a flexibilidade numérica.

Em segundo lugar, reconstitui as bases do regime de acumulação de capital, interrompido pela nacionalização dos grandes grupos económicos privados em 1975. Em 1989, a segunda Revisão Constitucional elimina o princípio da «irreversibilidade das nacionalizações» e a «Lei-Quadro das Privatizações» define as condições para a alienação da banca e seguros, telecomunicações, energia e siderurgia, entre outros. A este processo é associado a uma retórica modernizadora do país, de reestruturação organizacional e tecnológica com vista a fazer face à concorrência internacional e de aproximação ao modelo de organização económica dos países da então Comunidade Económica Europeia (CEE).

Face a estas mudanças, os sindicatos erigiram um discurso de crítica, embora acompanhado por uma relativa indiferença e ténue protesto. É aliás de registar que ao longo da implementação do «programa forte do neoliberalismo» no campo do trabalho não se tenha verificado nenhum momento de derrota histórica do sindicalismo português, à semelhança da greve dos controladores de tráfego aéreo nos Estados Unidos (1981) e dos mineiros britânicos (1984). As mudanças descritas abalariam, de forma silenciosa mas determinada, as bases do poder sindical.

Círculo muito pouco virtuoso

As reestruturações produtivas desarticularam o núcleo central do sindicalismo, assente no operariado qualificado de grandes empresas do sector industrial, caracterizado pela estabilidade, homogeneidade e forte cultura identitária. O investimento transfere-se para os serviços, face à pouca lucratividade da actividade produtiva industrial. A reengenharia organizacional, a mudança tecnológica e das qualificações conduz à saída de muitos milhares de trabalhadores «fordistas» através de reformas e rescisões por acordo mútuo. Reduz-se o número médio de trabalhadores por unidade, mercê da automatização, da externalização e da subcontratação.

A classe trabalhadora «fragmentou-se, heterogeneizou-se e complexificou-se» por via de um processo simultâneo de desestabilização dos estáveis, instalação na precariedade e existência de supranumerários . A força de trabalho com contrato estável diminui, e paira sobre esta a ameaça constante da perda de emprego, sobretudo nos sectores expostos à competição internacional. A maioria do emprego criado assume a forma contratual de trabalho atípico, o que tem consequências ao nível da individualização das relações de trabalho. Por fim, o crescimento económico convive bem com a manutenção de um desemprego estrutural criando supranumerários, «inúteis para o mundo», excluídos da relação de emprego e com pouca capacidade de denúncia da sua condição.

Consequentemente, verificou-se a desagregação e fragmentação das identidades dos trabalhadores ao longo destas linhas de crescente diferenciação, segmentação e flexibilização, descentralização da produção e precarização da relação salarial. Difunde-se e interioriza-se o imaginário do «fim do emprego para toda a vida», discurso derradeiro legitimador das qualidades do trabalhador absolutamente flexível. Entra assim, no mundo do trabalho, uma nova geração de trabalhadores, simultaneamente mais qualificada e mais precária, bombardeada pelos signos da sociedade do consumo e da flexibilidade como um modo de vida, com valores e atitudes pouco orientadas no sentido da acção colectiva sobre questões laborais.

A resposta sindical face a esta nova situação tem sido claramente insuficiente. O panorama sindical português é marcado pela divisão ideológica, elevada fragmentação de organizações, valores decrescentes de densidade sindical – actualmente, cerca de 20% − e um nível baixo de conflitualidade laboral medido pela realização de greves. O perfil tipo do trabalhador sindicalizado mudou de composição com a diminuição dos efectivos industriais e o crescimento dos sectores públicos da Administração Central e Local.

A lógica de actuação sindical concentra o grosso da sua intervenção na conservação de posições e defesa de direitos adquiridos de um número cada vez menor de trabalhadores. As novas sindicalizações ocorrem sobretudo em locais de trabalho com elevada densidade sindical e em trabalhadores com contratos estáveis, subsistindo uma clara dificuldade em se dirigir e organizar o contingente crescente de trabalhadores precários, nomeadamente jovens e mulheres, o que cria a percepção de fechamento sobre interesses corporativos e não os interesses gerais da classe trabalhadora.

Esta espiral centrípeta acentua a diminuição do número de efectivos e recursos disponíveis para a intervenção, deteriorando a sua posição negocial, o que por sua vez permite novas ofensivas patronais (e governamentais) que degradam ainda mais o contexto sociopolítico em que desenvolvem a sua actuação.

As estratégias de revitalização sindical têm-se caracterizado sobretudo pelas fusões, com vista a racionalizar recursos e diminuir a fragmentação na estrutura de representação, evitando sobreposições e suprindo lacunas. Mas a urgência da situação deveria impor uma reflexão mais profunda e uma reorientação estratégica que procurasse lidar com os pontos fulcrais que toldam a capacidade de acção sindical.


Retorno da estratégia?

Como ponto prévio, importa inquirir: será que os trabalhadores estão irremediavelmente distanciados dos sindicatos? As suas atitudes em relação a este tópico possuem traços ambivalentes. João Freire assinala, com base num estudo, que dois terços dos inquiridos concordam que «os sindicatos são muito importantes para a segurança do emprego» e que «sem os sindicatos, as condições de trabalho seriam muito piores do que aquilo que são». Simultaneamente, há «62% que afirmam não simpatizar com qualquer dos sindicatos existentes, 53% dos respondentes não lhes reconhecem qualquer eficácia de acção e apenas 5% recorreriam às estruturas sindicais para resolver um seu conflito com o empregador» e a esmagadora maioria nunca pertenceu a um sindicato.

O fenómeno é ainda mais problemático na chamada nova economia dos serviços. O estudo de Maria da Conceição Cerdeira , inquirindo operadores de caixa de grandes superfícies e de call centers, revela o panorama de uma força de trabalho maioritariamente jovem, feminina e qualificada, com maior incidência de contratos precários e níveis de sindicalização ainda mais incipientes. Em qualquer dos casos a principal preocupação dos trabalhadores é a da (in)segurança do emprego, seguida de questões como o interesse do trabalho, progressão na carreira, remuneração e autonomia nas tarefas.

Ressalta o facto de os sindicatos continuarem a ser considerados instituições importantes. Urge aprofundar a análise das motivações para a insatisfação e/ou desconfiança dos trabalhadores em relação aos sindicatos, algo que não é feito nos referidos estudos. Esta questão coloca no entanto uma interpelação fundamental ao sindicalismo, ao qual este deve saber dar resposta sob pena de agravamento da sua posição global. Coloca-se então a necessidade de uma reorientação estratégica que lide com as causas desta incapacidade de atracção e organização de novos membros. Uma nova orientação teria implicações ao nível das orientações políticas mas também no que concerne à mudança organizacional, funcionamento democrático, alocação de meios humanos e recursos materiais, bem como na renovação das formas de acção política.

Importaria assumir uma estratégia de acção que expandisse o sindicalismo também para fora do campo tradicional em que se move, construindo campanhas dirigidas a sectores mais fragilizados da população trabalhadora, com maior abertura a outras temáticas e aliança com novos sujeitos políticos e movimentos sociais. O seu perfil futuro dependerá portanto das opções estratégicas que tomar: se a mera defesa de um sector decrescente e relativamente menos atacado da classe trabalhadora, ou uma via solidária que usa a força dos que estão em melhor posição em defesa dos mais fracos, conduzindo a uma melhoria da posição global da condição da classe trabalhadora.

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Bob Jessop, «Post-Fordism and the State», in Ash Amin (org.), Post-Fordism: a Reader, Blackwell, Cambridge, 1994, pp. 251-279.
Robert Castel, As Metamorfoses da Questão Social: Uma Crónica do Salário, Vozes, Petrópolis, 1998, p. 444.
Boaventura de Sousa Santos (org.), Portugal: um Retrato Singular, Edições Afrontamento, Porto, 1993.
Boaventura de Sousa Santos, «Teses para a Renovação do Sindicalismo em Portugal, Seguidas de um Apelo», Vértice, n.º 68, 1995, pp. 132-139.
Ricardo Antunes, Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho, Cortez, São Paulo, 1995.
Robert Castel, op. cit.
Dados do EIRO (European Industrial Relations Observatory). O valor máximo atingido terá sido de 59% para o período de 1979-84. Ver «Livro Verde das Relações Laborais», MTSS, Lisboa, 2006. A densidade sindical não é no entanto o único indicador de força sindical. A título de exemplo, o sindicalismo francês, embora com níveis baixos de sindicalização, é capaz de conduzir greves maciças. A manifestação de 29 de Maio, convocada pela CGTP, juntou 300 mil pessoas, e demonstra a importância do sindicalismo enquanto actor político.
João Freire, Economia e Sociedade − Contributos para uma Sociologia da Vida Económica em Portugal na Viragem do Século, Celta, Oeiras, 2008, p. 143.
Maria da Conceição Cerdeira, «Estratégias sindicais e precariedade do emprego», in Ilona Kovács (org.) Flexibilidade de Emprego – Riscos e Oportunidades, Celta, Oeiras, 2005, pp. 91-127.

 


 


 
 
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