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26-06-2020        Público

A recente onda internacional de protestos antirracismo, desencadeados pelo homicídio de George Floyd sufocado pelo joelho de um polícia a que se seguiu um segundo homicídio com contornos semelhantes (de Rayshard Brooks, um afrodescendente baleado nas costas), espoletaram um novo ciclo de protestos internacionais. Já se sabia que as manifestações e a conflitualidade social não iriam desaparecer com a covid-19. Elas estão agora a reemergir após o período de tréguas que momentaneamente nos paralisou de medo.

Um modelo económico como o que temos, marcado por desigualdades sistémicas, manifesta-se também na desigual incidência da doença e da morte, em função de condições de classe, índices de pobreza e outras formas de discriminação (veja-se o estudo exemplar do sociólogo sueco Göran Therborn, The Killing Fields of Inequality, 2014). É por isso que os efeitos da crise – sanitária e económica – se teriam de refletir assimetricamente, seja no disparar do desemprego e da pobreza, seja no reemergir da crispação social fundada nas mais diversas formas de injustiça e discriminação. Porém, apesar das pulsões rebeldes da sociedade civil poderem ativar mobilizações de conteúdo progressista ou emancipatório, é sabido que a contestação contra o statu quo há muito deixou de ser expressão direta de uma tomada de consciência vanguardista.

Nos últimos tempos, a diluição e esbatimento das velhas ideologias deu lugar a dinâmicas sociais onde a ação coletiva traduz sobretudo respostas contra o medo: medo da miséria, da exclusão, do abandono, da insegurança, do fascismo, dos refugiados ou de minorias étnicas de natureza diversa, etc., etc. E é neste contexto que as lutas sociais, ainda que suscitadas por causas libertárias, podem estar mais próximas do que parece de movimentos populistas e de extrema-direita. Os chamados “contramovimentos” respondem não só ao excesso de mercantilismo mas também se dirigem contra as políticas inclusivas do Estado social. São conhecidos em diversos países europeus a rápida reorientação do sentido de voto em eleitorados com passado histórico de esquerda (inclusive socialista e comunista) que passam a apoiar partidos xenófobos e neofascistas. Isto prende-se com o avanço de forças identitárias e radicalismos que ganham terreno face ao grau de consciência política das classes subalternas. É também por fatores desta natureza que os movimentos sociais inorgânicos são facilmente apropriados ou se deixam infiltrar por grupos fundamentalistas e podem abrigar ações violentas. No meio da multidão em fúria, o vandalismo facilmente ganha adeptos. Vale a pena considerar estes aspetos para entender o problema do racismo e as consequências destrutivas dos protestos, nomeadamente na destruição de património histórico, quando esta se confunde com a denúncia do racismo e do colonialismo.

Os acontecimentos recentes obrigam-nos ainda a questionar o modo como as experiências do passado incidem no subconsciente coletivo dos povos, ao mesmo tempo que os sentimentos latentes herdados desse passado podem de repente vir ao de cima, mostrando como os estereótipos naturalizados obstruem a visibilidade de fenómenos e preconceitos como é o caso do racismo. É claro que num país como os EUA – onde a segregação racial já causou tantas vítimas e onde o movimento negro se ergueu à custa dos muitos mártires, desde o assassínio de Martin Luther King –, a violência contra os afroamericanos, exibida desta forma tão ostensiva, teria de gerar consequências. Neste caso, traduziu-se num reavivar da questão racial, o que ilustra bem a divisão estrutural existente na sociedade e na atual política americana (cujas repercussões podem ter consequências decisivas na próxima eleição presidencial).

No caso português, as manifestações ocorreram num momento em que os novos focos de contaminação incidem em setores e bairros de comunidades afrodescendentes, o que trouxe ao de cima o tema do racismo, pondo em questão o velho cliché de que em Portugal o problema não existe. Subproduto do velho estereótipo do povo de “brandos costumes”, ideia que Salazar explorou (em linha com o mito do “homem cordial” brasileiro ou do “luso-tropicalismo”, conceitos que Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire teorizaram) como a essência das nossas qualidades afetivas, invocando a suposta facilidade de miscigenação, etc. Embora tal narrativa tenha sido negada por uma longa guerra colonial e pelo lastro de escravatura e “coronelismo” no Brasil, a ideologia dominante conseguiu perpetuá-la aos olhos do senso comum, permanecendo até hoje, contra toda a evidência empírica.

A força dos preconceitos enraizados relativos à etnia cigana, aos africanos, afrodescendentes e até mesmo aos brasileiros, cujas comunidades são, de um modo ou de outro, estigmatizadas, é profunda e persistente em Portugal. Basta olhar, por exemplo, para o campo dos média, da cultura, dos partidos políticos, das instituições públicas em geral, e mesmo o mundo empresarial para constatar que vivemos num país onde as oportunidades são só para brancos, em contraste com as múltiplas etnias que compõem a nossa sociedade. São exceções os representantes dessas minorias em lugares de destaque e não é preciso procurar muito para ouvirmos comentários ao atual primeiro-ministro como o “monhé” (e quanto aos ciganos estamos conversados).

No contexto revolucionário em que ocorreu o processo de independência das ex-colónias africanas, no qual o sentimento antifascista se fundiu com o fim do colonialismo, a clivagem entre a hegemonia de esquerda e o regresso dos retornados obnubilou a memória coletiva dos portugueses em relação ao passado colonial. O problema não é, portanto, de agora. Já em finais dos anos noventa do século passado diversos estudos mostraram a contradição entre a apreciação subjetiva e as práticas efetivas relacionadas com o racismo no país. Se, por um lado, a maioria dos portugueses concordava que “não existe racismo em Portugal”, por outro lado recusava, por exemplo, viver na vizinhança de uma comunidade cigana, e afirmava não tolerar que uma filha sua namorasse ou casasse com um negro, etc., etc. Evidentemente que a perceção do preconceito (étnico, sexista ou outro) só é possível se considerarmos a opinião das suas vítimas. Por isso, minorias de origem africana, inquiridas no referido período, mostravam que “existe muito racismo em Portugal” (62,1% dos guineenses) e que “a maioria dos portugueses é racista” (66,5% dos cabo-verdianos; isto segundo estudos de Fernando Luis Machado e Ana Saint-Maurice, 1997). Mais recentemente, um estudo do ICS de 2017 (coordenado por Jorge Vala, citado pelo PÚBLICO, 2.09.2017) colocava Portugal entre os países onde um maior número de cidadãos partilha a ideia de que “existem raças superiores a outras” do ponto de vista biológico (52,9%) e mesmo “culturas superiores a outras” (54,1%), o que diz bem da presença de preconceitos étnico-raciais em Portugal.

É claro que a atual onda de indignação remete para o passado de escravatura e de colonialismo. Mas para que o combate ao racismo atual nos países ocidentais não se confunda com um ajuste de contas com a história importa equacionar essa denúncia com a defesa da democracia e dos direitos humanos, conquistas que, afinal, são também património do Ocidente. Só em ambiente democrático – e na defesa inflexível dos seus valores – se podem apaziguar os traumas da história, reivindicar direitos sociais, lutar contra as desigualdades, os preconceitos e a servidão. Compreende-se que alguns “heróis” do passado colonial sejam contestados, removidos do pedestal e postos a descansar nos museus. Porém, não são a violência e os excessos do presente que podem fazer justiça à violência e excessos do colonialismo. A denúncia das estátuas do colonialismo pode contribuir para despertar a consciência coletiva contra o preconceito, mas é urgente que esse debate não se confunda com espírito de vingança.


 
 
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Elísio Estanque



 
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