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11-02-2020        Público

Um dos maiores anfiteatros da Universidade de Jena foi pequeno para acolher tanto público. Apesar de estarmos já em época de avaliações, estudantes, professores e funcionários responderam aos apelos dos ativistas do campo da esquerda para discutir o momento político criado com a indicação de Thomas Kemmerich (o líder local do FDP – Partido Liberal Democrata, liberal de centro-direita) para novo chefe de Governo do estado federado com o apoio da extrema-direita neonazi (AfD), com 45 votos a favor contra 44 (e uma abstenção, num total de 90 deputados). Após várias tentativas de aprovação, sem consequências, os deputados neofascistas votam em bloco (juntamente com a CDU e o FDP) no candidato do partido mais pequeno do parlamento, impedindo assim a recondução de Bodo Ramelow, o ex-chefe de Governo e líder local do maior partido saído das eleições de outubro (Die Linke, com 31%).

“Caiu a máscara!”, proclamou Kevin Kühnert, o atual líder da juventude social-democrata (SPD), atitude partilhada pelos partidos de esquerda, denunciando a existência de acordos secretos entre os líderes locais de CDU, FDP e AfD, ou seja, rasgando o consenso cuja “linha vermelha” consiste na recusa de qualquer aliança ou acordo com o partido neonazi, o AfD. O chamado “tabu” estaria assim a cair por terra. A complexidade da situação política já era enorme, como de resto se pode perceber pelo simples facto de não ter sido ainda possível formalizar um novo governo, mais de três meses após as eleições.

Em 31 de outubro de 2019 publiquei neste jornal um artigo ("O ‘espectro’ neofascista na Turíngia") sobre os resultados eleitorais (de 27 de outubro) no estado alemão onde estou de passagem. Aí, questionava a complexidade das transformações socioeconómicas na Alemanha de Leste desde a unificação e os efeitos políticos desse processo, designadamente o crescimento do partido AfD (que em quatro anos cresceu de 10,6% para 23,4%). Apesar de a força política até agora no poder (Die Linke, com a liderança do ex-chefe de Governo, Ramelow) se ter consolidado e vencido essas eleições (com 31%), o resultado foi insuficiente para prolongar a anterior maioria porque os seus aliados do campo da esquerda (o SPD e Verdes) perderam apoio eleitoral e deputados.

Agora tudo fica ainda mais confuso. Estalou o alerta geral junto dos setores democráticos, perante a iminência de, pela primeira vez desde o fim do Reichstag, a extrema-direita alcançar o poder. O abanão foi tal que, um dia depois de ter sido nomeado, Kemmerich afirmou que iria resignar. No quadro político recente, acentuaram-se também as clivagens entre as lideranças locais e as direções nacionais dos partidos, e isso ganha maior evidência no campo da direita (CDU, FDP e AfD). Não é seguramente por acaso que estão aqui enraizadas as fações mais radicais dos partidos da direita (mas também do Die Linke). Esta é a região onde a votação na extrema-direita mais cresceu desde o início do século. A própria Angela Merkel se antecipou à atual líder do seu partido (Annegret Kramp-Karrenbauer, conhecida por “AKK”), afirmando que o que aconteceu no passado dia 5 na Turíngia “é imperdoável”, referindo-se ao comportamento dos deputados locais e ao seu líder (Mike Mohring). Recorde-se que a direção nacional proibiu que o partido se aliasse com a esquerda no parlamento de Erfurt (sede política do estado federado), tornando este jogo ainda mais duvidoso. E, para agravar o caos instalado na CDU, a “sucessora” de Merkel acaba de anunciar a sua resignação.

A história não se repete. Ao contrário de há 100 anos atrás, a Alemanha não acabou de ser derrotada e humilhada numa guerra mundial, não se conhece nenhum caso de uma revolução comunista bem sucedida na Europa de Leste, não existe nem o velho movimento operário, nem a inflação galopante, nem o desemprego vertiginoso, nem a reedição de uma nova Liga Spartakus a formar sovietes pelo país, ou sequer algo longinquamente similar. Porém, certamente que para muitos alemães ecoam ainda na memória as frases entusiasmadas de Adolfo Hitler perante os resultados eleitorais de há 90 anos nesta mesma região: “Os partidos na Turíngia não conseguem assegurar a maioria para formar governos sem a nossa cooperação”, exultando com o sucesso do Partido Nazi (NSDAP) que acabara de triplicar a votação nas eleições de setembro de 1930. Mas, apesar de todas as diferenças, a insegurança, as desigualdades e o ressentimento permanecem combustíveis decisivos que a AfD sabe usar para incendiar a pradaria.

Se até agora a Turíngia já era vista como uma espécie de “case study”, onde a Alemanha como um todo se começou a sentir projetada, essa ameaça torna-se agora bem mais real e preocupante. As contradições instaladas ganham expressão sobretudo no plano político-partidário; mas elas derivam em larga medida (como apontei no artigo citado) de processos mais profundos e complexos, enraizados no terreno sociocultural e que se foram reconfigurando ao longo dos últimos 30 anos.

Há setores sociais expressivos que se sentem vítimas do sistema. Persistem as duas Alemanhas. Uma elucidativa reportagem realizada em novembro passado por uma equipa do Diário de Notícias, sobre a chamada “pequena Berlim”, uma pequena aldeia (Mödlareuth) que fica na fronteira entre a Turíngia (antiga zona Leste) e a Baviera (Oeste), mostra bem o fundo do problema e ajuda a entender o paradoxo que caracteriza a Alemanha atual. Tal como em Berlim, também ali havia um muro. O muro foi derrubado, mas na verdade não desapareceu. Na metade ocidental, que pertence ao distrito de Töpen, as estradas são boas, a indústria é pujante e as infraestruturas modernizaram-se, enquanto do outro lado (pertencente a Gefell, zona Leste) continuam as estradas esburacadas, a velha indústria implodiu e os salários são cerca de 17% inferiores. O primeiro município, com 900 habitantes, tem um orçamento anual de 3,5 milhões de euros, enquanto o segundo recebe o mesmo valor mas para 2500 habitantes.

Na mesma reportagem, há uma frase de um antigo cientista que regressou às origens, depois de uma experiência na Alemanha ocidental, que resume na perfeição as razões do crescimento da AfD: “Há muita gente que ficou com a vida estragada depois da queda do muro. E parece que é quase proibido falar disso, que não se pode pôr em causa a benevolência da unificação das duas Alemanhas. Então as pessoas vão acumulando a sua frustração, sentem que ninguém as entende, afastam-se da política.”

Populações inteiras e envelhecidas viveram o processo de unificação como se de uma anexação se tratasse. Esse sentimento de abandono acentua-se, acicatado pelo populismo neonazi (partidos como o AfD e o Pegida), que canaliza o ressentimento difuso das comunidades, apontando baterias ao Estado alemão e aos “políticos corruptos” do sistema, acusados de dedicar “excessiva proteção” aos imigrantes e refugiados enquanto aqueles se debatem com as suas “necessidades vitais”. Necessidades materiais mas também psicológicas e identitárias. (reportagem “Derrubámos o muro mas a extrema-direita está a levantar outro”, por Ricardo J. Rodrigues, DN, 02/11/2019.)

E o problema é que os partidos hegemónicos como o SPD e a CDU não conseguiram entender e enfrentar a sério esses problemas estruturais. O dirigente do FDP a nível nacional (Christian Lindner) tem sido ridicularizado, quer pelas suas hesitações e não demarcação imediata de Lammerich, quer pela incoerência com declarações suas do passado recente. Os protestos da esquerda recordaram uma afirmação que proferiu em 2017 (a propósito de uma hipotética aliança com o CDU de Merkel): “É melhor não governar do que governar mal!” Hoje, os críticos exibem nos cartazes de contestação a frase: “É melhor governar com os nazis do que não governar!”

Adivinha-se um período de convulsão social e já estão agendadas diversas manifestações antinazis, a exigir novas eleições para breve neste estado federado. Mas não é certo que, em tal cenário, a AfD venha a ser significativamente penalizada. Ao fundo da luz pode surgir um novo túnel.


 
 
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Elísio Estanque