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15-09-2019        Público

O regresso da extrema-direita ao primeiro plano do debate político nas sociedades democráticas tem dado um papel de relevo aos chamados «usos da História». Por isso, é um erro atribuir a esta disciplina um lugar neutro, limpo, silencioso, supostamente acima dos interesses e dos conflitos. Se vivemos a era da globalização, permanecemos ainda herdeiros das estruturas políticas nascidas no século XVIII, o que, como notou Marc Ferro, se reflete em muitos dos problemas e dos confrontos que enfrentamos. Estes continuam a passar por batalhas em redor da democracia e da liberdade, do papel do Estado e dos nacionalismos, do lugar da solidariedade e do individualismo, dos direitos humanos e da igualdade, bem como pelos processos de transformação que seguem modelos e ideais contraditórios, associados a diferentes interesses.

De forma empírica ou impressiva o referencial histórico é muitas vezes invocado, como argumento ou fator de manipulação, por quem mais diretamente está envolvido nos sistemas de poder e na luta política, mas quando se procura afirmar de forma mais consistente tem tido, muitas vezes, a colaboração da história profissional. Basta observar de modo crítico as múltiplas interpretações dos acontecimentos que inspiraram as mais volumosas historiografias – as da Revolução Francesa e da Revolução de Outubro de 1917, assim como as das duas Guerras Mundiais – para que se perceba a constância e a inevitabilidade das leituras situadas em diferentes trincheiras. O mesmo acontece em relação a temas que permanecem controversos, como os sistemas totalitários do século XX, a natureza do Holocausto e do Gulag, os «longos Anos 60», a Guerra Fria e a Queda do Muro, ou os movimentos emancipatórios e as lutas de libertação: sobre todos eles diferentes interpretações determinam diferentes modos de usar a História.

O papel do Estado, das instituições públicas, dos partidos políticos é aqui crucial. O conceito-chave é o de «legitimação». A História é usada como instrumento que confere identidade a determinadas categorias e assegura a legitimidade de regimes, relações de poder ou programas políticos. Neste contexto, qual pode ser então o papel da História profissional e dos organismos que a tutelam? Ao longo do século XIX a disciplina foi ganhando peso no espaço do saber universitário, demarcando-se em parte da filosofia e do direito, para os quais tivera até então um sentido propedêutico, definindo a autonomia e o papel do que podemos chamar a cultura histórica.

Esta assentou em dois pilares que foram a sua força, mas definiriam também a sua fragilidade. No primeiro, a escrita da História visava principalmente a produção e a validação dos projetos nacionais em construção. No segundo pilar, ela assentava na crença positivista na ciência objetiva, «inquestionável», que tendia a orientar explicações unívocas e a impedir a apresentação de alternativas aos pontos de vista dominantes. A História emergia assim como verdade «pura», que configurava as escolhas dos vencedores e dos poderosos, enquanto omitia, silenciava e colonizava as dos vencidos e dos oprimidos, apresentando-se enganosamente como una e comum a todos eles.

Apesar de se confrontar a partir dos meados do século passado com outras escolas e metodologias de abordagem do passado, essa forma de encarar o foco historiográfico não desapareceu. A História de «ciência certa», julgada inequívoca, fundada quase exclusivamente no documento escrito, trouxe, sem dúvida, alguns contributos notáveis para o conhecimento do passado, mas ao mesmo tempo disseminou a convicção de que existe nele uma dimensão de «verdade» que é insuscetível de uma leitura política, considerada parcial. Um certo saber histórico é assim fixado numa enorme lápide e provido de «selo branco», quando na verdade está sujeito à usura do tempo e às circunstâncias dos seus intérpretes, que lhes conferem leituras diversas e em permanente construção.

Na verdade, o campo do saber histórico só pode ser plural, sendo nesta pluralidade que assenta a capacidade para reduzir as margens de erro e de manipulação, e para tudo colocar em perspetiva, possibilitando um conhecimento mais completo e dinâmico. Num livro sobre as violências do século, Enzo Traverso interpreta a História, em particular a contemporânea, «como um campo de batalha», como espaço para a verbalização de conflitos, olhares e projetos que, apesar de ancorados na pesquisa histórica, inúmeras vezes ultrapassam as suas fronteiras. Retira assim à disciplina a sua conceção «sacral», definindo-a como lugar de confrontos e de debates que não lhe permitem que se coloque fora da política, e afasta o historiador profissional do papel de sacerdote, requalificando-o como cidadão. Com Walter Benjamin, Traverso assume que ele escreve e reescreve «um texto a tinta invisível», jamais fixo, linear e definitivo.

No mundo atual, em Portugal também, é, pois, um perigoso equívoco – e um desvio epistemológico profundamente retrógrado – pretender-se, seja sobre que tema for, produzir um conhecimento histórico apresentado como absolutamente certo e seguro, que exclua a política, assim como a pluralidade e a transitoriedade das representações contemporâneas, que possa fixar o que merece ser escrito ou mostrado, ou o que se justifica omitir. Por isso, na polémica em curso sobre as interpretações da História e os «lugares de memória» do Estado Novo, representa um logro e um perigo afirmar a possibilidade de existirem interpretações inteiramente únicas e fidedignas, julgadas estritamente científicas. É esse um passo para retirar à História a capacidade conflitual que contém, para a desumanizar, para a «despolitizar», colocando-a ao dispor de quem tenha meios para a manipular e interesse em fazê-lo. Gente dessa não falta.


 
 
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Rui Bebiano



 
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