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07-12-2018        Público

Estamos em dezembro, e as decorações natalícias aí estão para o fazer notar. Neste mês assinala-se um nascimento especial que nos convida a refletir. Após um transplante de útero bem-sucedido, uma mulher deu à luz uma criança. Aconteceu há um ano, numa unidade hospitalar em São Paulo, e mãe e criança permanecem bem e saudáveis.

A novidade deste caso não decorre do transplante de útero em si mesmo, procedimento que aconteceu pela primeira vez na Suécia em 2013, tendo sido efetuado desde então em 39 mulheres. No caso agora relatado na reputada revista científica The Lancet, tornado possível graças a uma equipa chefiada pela médica e investigadora Dani Ejzenberg, a dadora do órgão transplantado para a mãe de 32 anos teria morrido de acidente vascular aos 45 anos. Tratou-se aqui de um caso de doação de órgão, idêntico a inúmeras outras situações em que a colheita de órgãos viáveis como o coração, pulmões ou córneas, entre muitos outros, é feita logo após a morte da pessoa dadora. Mas nunca, até ao momento, tinha sido possível assegurar as condições para uma gravidez segura e com sucesso a uma mulher cujo transplante de útero tivesse ocorrido por motivo de óbito da dadora.

Naturalmente este facto é motivo de grande regozijo para a mãe e a criança. Mas também é fonte de celebração para a comunidade científica cuja dedicação e rigor conhecem agora estes extraordinários resultados. Este facto é ainda razão de esperança para todas as pessoas para as quais a parentalidade sem intervenção médica alargada não é possível, nomeadamente as pessoas sem útero. Assim, para além da possibilidade de adoção, coadoção ou procriação medicamente assistida – legalmente disponível em Portugal para todas as pessoas independentemente do seu estado civil, identidade de género ou orientação sexual –, abre-se agora uma janela de oportunidade eticamente responsável que autonomiza gestação e corpo da pessoa gestante, mãe ou pai. Já a gestação de substituição dera um passo significativo nesse sentido, ainda que de uma forma distinta e com as restrições jurídicas e de procedimento que são conhecidas e que colocam todas as pessoas envolvidas num limbo que, desejavelmente, será ultrapassado a curto prazo.

Agora sabemos que o transplante de útero a partir de doação de órgãos após um óbito pode constituir um caminho viável, quer para a pessoa gestante, quer para a criança. Representando um avanço sem precedentes na área da medicina, alarga-se assim o campo de soluções reprodutivas para pessoas sem útero que manifestem o seu consentimento informado relativamente a este procedimento. Tal possibilidade, tornada finalmente real, deve merecer uma atenção séria, protegida do facilitismo mediático, e sobretudo dos julgamentos de valor que se ancoram em visões restritivas sobre reprodução e parentalidade, galvanizados, neste caso em particular, por algum pânico moral em torno da morte. Recorde-se, a este propósito, que Portugal ocupa o segundo lugar a nível mundial no número de órgãos de pessoas dadoras mortas. Só em 2017, de acordo com dados disponibilizados pela Coordenação Nacional da Transplantação (CNT), colheram-se 1.011 órgãos e realizaram-se 895 transplantes, o que traduz um aumento de 3,5% face a anos anteriores. Importa também recordar aquilo que torna a colheita e transplantação de órgãos, tecidos e células de origem humana num dos mais nobres exercícios da prática clínica. De acordo com a CNT, unidade responsável em Portugal pela regulamentação e normalização das atividades de dádiva, colheita e transplantação, o principal objetivo é “a promoção da doação altruísta, promovendo o aumento progressivo da disponibilidade de órgãos, tecidos e células para transplante, garantindo desta forma que todos os cidadãos que necessitem de um transplante tenham as maiores e melhores possibilidades de o conseguir”.

Trata-se portanto de matéria estritamente ligada ao acesso a uma cidadania plena, no âmbito da qual se inclui o direito à saúde reprodutiva. As questões que se colocam no momento em que este caso se tornou conhecido devem então centrar-se no bem-estar e autodeterminação das pessoas envolvidas, como sucede, de resto, em qualquer outra esfera de cidadania íntima.

Relembrando as vezes que forem necessárias que a parentalidade é muito mais do que a mera reprodução biológica, acresce ainda sublinhar que este caso não configura, necessariamente, experimentalismo de pendor natalista, visando colocar a capacidade reprodutiva no centro da ordem social, na esteira de Gilead. E assim sendo, cumpre apelar também à dimensão de defesa do direito inalienável à autodeterminação sexual e reprodutiva que, em situações pontuais mas reiteradas em tempos recentes, parece gerar dissensos pouco razoáveis à luz de um feminismo emancipatório. Seria particularmente dececionante que o transplante de útero, mais do que uma oportunidade transversal a todas as pessoas, se transformasse numa plataforma de reforço de estereótipos sexistas, abolicionistas ou transfóbicos, como tem sucedido, por exemplo, com a gestação de substituição enquanto trabalho reprodutivo.

E, já agora, aproveitemos o momento para dar parabéns à criança que celebra o seu primeiro aniversário a 15 de dezembro. E para lhe deixar um agradecimento que não cabe nas palavras, porque foi ela, deusa-menina nascida em São Paulo, que nos mostrou que era possível imaginar formas alternativas de existência e resistência.


 
 
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Ana Cristina Santos



 
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