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10-08-2018        Público

 Em 1901, Eça de Queiroz publicava A Cidade e as Serras, onde nos transporta para a sociedade portuguesa de oitocentos e para sua relação com a Europa. Depois de fazer um elogio à “civilização”, Eça e os seus personagens, Jacinto de Tormes e Zé Fernandes, admiram longamente os prazeres da natureza, o mundo rural, “a belleza na simplicidade”. No regresso de Paris, os dois amigos não passaram pelo litoral, onde poderiam também ter-se maravilhado com a diversidade da paisagem portuguesa, já transformada pelos seus antepassados como um espaço natural ou agrícola, mas ainda não destruída pela cegueira do turismo, tanto o de massas, como o de elite.

Em certo sentido, esta viagem, que Eça nos oferece, não está distante das viagens turísticas que portugueses e estrangeiros realizam todos os anos por Portugal desde o início do século 20. Todos se afastam das cidades em direção à natureza, seja à serra ou à praia, ao rio ou ao mar, procurando aquilo que as cidades têm dificuldade em oferecer: o lazer, a tranquilidade, o descanso.

A primeira fase do turismo em Portugal, até aos anos 50, é relativamente atenta ao equilíbrio entre edificação e natureza, com pequenos hotéis e conjuntos de moradias de baixo impacto, pensados e usados predominantemente pela elite, replicando os modelos internacionais que tinha visitado em França ou em Itália.  Já a segunda fase, a partir dos anos 60, com especial expressão nos anos 80, ocorre a grande velocidade, atropelando o pouco planeamento que se ia fazendo (como o de Vilamoura por Keil do Amaral), para construir hotéis, apartamentos, aldeamentos, casas, parques de campismo que dessem resposta ao turismo de massas, consequência natural do direito às férias, mas também ao turismo de elite, cada vez mais exigente, com os hotéis e aldeamentos, com campos de golf ou marinas privadas.

Hoje todos temos consciência deste fenómeno de massificação e da nossa incapacidade para o travar. Confrontamo-nos com este facto anualmente quando partimos de férias e atravessamos o nosso país, especialmente ao longo de todo o litoral. É claro, que ainda nos restam (ou restavam) pequenas grandes áreas aparentemente protegidas por iniciativa de diversos governos, a começar pelos nossos antigos monarcas que, inteligentemente, compreenderam a necessidade de dar uma função a vastas áreas naturais e garantir assim a sua preservação.

Dois casos são paradigmáticos: por um lado, o Pinhal de Leiria, com11.000 hectares, florestado por D. Dinis, mas dizimado o ano passado pelos incêndios devidos à falta de vigilância e à (eventual) ação de alguns agentes com interesses económicos. Por outro lado, o caso da Herdade da Comporta, a maior propriedade privada com 12.500 hectares, outrora pertencente à coroa portuguesa. A produção de sal, de arroz e de pinheiros (entre outros) tem constituído um forte motor de desenvolvimento desta área que se situa entre Troia, Alcácer do Sal e Grândola. Ao adquirir a propriedade, a família Espírito Santo deu continuidade à sua ação produtiva, integrando, inclusive, um conjunto significativo de projetos ambientais e sociais. O risco de se perder este património material e imaterial dá-se quando a empresa inicia um projeto de especulação turística que não respeita o seu maior valor – a natureza. Segundo reportagem da Visão, o turismo de elite está a realizar obras ilegais para se instalar na Comporta, pondo em causa o equilíbrio entre edificação e natureza. Estas ações estendem-se também para as belas praias da costa alentejana (Brejo e Carvalhal), com ações que privatizam as praias que (ainda) são públicas em território nacional.

Agora, que a propriedade está à venda devido aos problemas jurídicos e financeiros do Grupo Espírito Santo, interessa perceber como vai atuar o Estado relativamente às ilegalidades praticadas e como vai atuar o futuro proprietário, relativamente ao projeto de salvaguarda e desenvolvimento sustentável da Herdade da Comporta. Um desafio interessante seria encontrar um modelo de turismo focado não só nos diversos ambientes da herdade, mas também nas diferentes “gentes” que a habitam e que dela dependem, recusando o modelo de condomínio ou resort de luxo e arriscando um modelo mais democrático de uma Comporta para todos, onde todos possam usufruir deste território excecional. Esta abertura permitiria igualmente dinamizar as relações com as cidades vizinhas, garantindo que a herdade fosse também um parque público.

No extremo oposto, estão as várias ocupações populares clandestinas que se fixaram noutras praias também excecionais, como as das ilhas da ria Formosa (Armona, Culatra, Deserta, Faro), que aguardam a implementação efetiva do projeto de salvaguarda e desenvolvimento (Polis Ria Formosa) e não apenas uma decisão avulsa de demolição para um conjunto de pequenas casas.

Em certo sentido, o país litoral, de norte a sul, aguarda uma estratégia de atuação que concilie o inevitável desenvolvimento, seja ele turístico ou outro, e a desejável salvaguarda do que resta das nossas praias e também das nossas serras que todos os anos ardem, como neste momento está a acontecer em Monchique, destruindo uma das serras mais belas de Portugal, perante o olhar desesperado e impotente dos milhares de turistas que ocupam as praias algarvias.

O que diria Jacinto a Zé Fernandes desta “civilização” que não controla a pressão sobre as suas praias e que falha anualmente na prevenção e na luta contra os incêndios? Provavelmente, regressaria às cidades, talvez Paris ou Lisboa, para esquecer o paradoxal caos do esplendor do verão.


 
 
pessoas
Gonçalo Canto Moniz



 
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arquitetura    serras    turismo    cidades    praias