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20-07-2018        Público

Aconteceu há uma semana em Coimbra – um casal de namorados foi insultado e violentamente agredido. A motivação do ataque foi incontestavelmente homofóbica. De acordo com várias fontes, o fator desencadeador terá sido um beijo de despedida presenciado por uma família preconceituosa. Mas na verdade o fator que espoleta a agressão não é o beijo, nem tão pouco a orientação sexual das vítimas. Neste caso, como em qualquer outra situação de violência de género, o que desencadeia a agressão é um preconceito que depois se pode traduzir num comportamento violento por parte da pessoa agressora – assim, sem tentativas de contextualização ou de busca de justificação para aquilo que não é admissível. Mas, para além da gravidade inegável dos factos, o grau de visibilidade que este caso conheceu prende-se também com o alinhamento da notícia. O modo como o evento foi descrito pela imprensa num primeiro momento, escolhendo colocar no título a origem étnica das pessoas agressoras, gerou uma vaga de comentários racistas, em número assustador (em volume e em conteúdo), que nos merece uma reflexão atenta e uma intervenção mais eficaz.

Importa notar que em anos recentes Portugal conheceu significativas transformações sociojurídicas que decorrem do reconhecimento de que o preconceito com base na sexualidade e na identidade ou expressão de género não é compatível com o projeto de liberdade democrática. Assim foi que, desde 2004, a Constituição da República Portuguesa nos garante que nenhum cidadão ou cidadã pode ser objeto de discriminação por orientação sexual, para citar apenas um dos aspetos dessa transformação legislativa. Pese embora a centralidade do progresso jurídico, o quotidiano tece-se de temporalidades diversas e constrói-se por referência a regras porosas, enraizadas de forma tácita e nem sempre ancoradas num discurso permeável à lógica ou sequer ao apreço pela dignidade humana. E foi assim que, por exemplo, Sara Vasconcelos foi violentamente agredida por um taxista homofóbico no Porto em 2014; ou que um jovem denunciou ter sido espancado por seguranças homofóbicos na Festa do Avante em 2015; ou que um membro da comitiva espanhola do Festival da Eurovisão foi alvo de agressão física de cariz homofóbico em maio deste ano.

Mas depois há toda a base da pirâmide que não chega a ser noticiada em detalhe. Segundo um estudo recente desenvolvido por colegas do ISCTE e da Universidade do Porto, três em cada cinco estudantes dizem já ter ouvido comentários homofóbicos por parte de docentes. Estes factos levaram já a declarações importantes por parte do Ministério da Educação que, pela primeira vez na história do país, reconheceu inequivocamente que a homofobia por parte de agentes educativos não é desculpável e será combatida disciplinarmente. Também a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, anunciou um pacote formativo sobre diversidade sexual que irá beneficiar cerca de 800 docentes no âmbito da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. Em suma, não bastam os preciosos progressos jurídicos – é urgente implementar medidas ativas de combate à homofobia e à transfobia em meio escolar, transversalizar a diversidade sexual, torná-la tão visível quanto banal ela de facto é.

Mas, para além dos factos, há, como vimos, o modo como a agressão homofóbica em Coimbra foi noticiada, bem como os comentários que desencadeou. Verificamos que o texto jornalístico desviou o enfoque face ao que estava em causa – violência homofóbica –, remetendo-nos para a constatação de um racismo tentacular e o papel da comunicação social enquanto agente de informação em todo este processo.

Regressemos por momentos a 10 de junho de 2005 para recordar o dia em que uma onda noticiosa construiu ativamente um alegado evento com efeitos que perduraram para lá de todos os desmentidos por parte das autoridades competentes. O então designado “arrastão” de Carcavelos, que jamais chegou a acontecer, conhecia assim contornos reais nos efeitos de racismo e xenofobia desencadeados, ainda que os pseudo-eventos descritos num primeiro momento fossem fictícios. Esse incidente passou a constar dos exemplos clássicos de má cobertura jornalística, tendo sido analisado pelo investigador Gonçalo Pereira Rosa e documentado num trabalho notável de Diana Andringa intitulado “Era uma vez um arrastão”.

Se relativamente ao evento de 2005 a responsabilidade da comunicação social foi reconhecida, da mesma forma urge perceber em 2018 que a linguagem nunca foi isenta e que, como tal, o modo descuidado ou, pelo contrário, responsável como expressamos os mesmos conteúdos noticiosos terá consequências muito distintas. A atenção seletiva à identidade de quem agride traduz uma agenda que é, conscientemente ou não, discriminatória. Não consta que as notícias sobre os ataques homofóbicos acima descritos e que vitimaram uma jovem lésbica no Porto, um jovem gay na Atalaia e um conhecido ator espanhol em Lisboa tenham desencadeado uma vaga de discurso de ódio contra taxistas, empresas de segurança ou clientes da noite lisboeta. A diferença está no preconceito, mas esse preconceito não se alimenta por si só, exige cúmplices que agem por determinação ou por incúria.

No caso da agressão em Coimbra, como noutros, o repúdio à homofobia tem que ser tão veemente quanto o repúdio ao racismo. Com este episódio, que nos entristece a tantos níveis, reaprendemos que, no país em que supostamente ninguém é racista, o racismo mais virulento está afinal por toda a parte. Por fim, o ataque que vitimou este casal gay é uma poderosa ilustração do carácter simultaneamente específico e interseccional da violência, lembrando-nos que a luta contra a discriminação diz respeito a todas as pessoas sem exceção


 
 
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Ana Cristina Santos



 
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