Centro de Estudos Sociais
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08-04-2010        Visão
A corrupção é um crime que compensa. Os ganhos são sedutores, os riscos de detecção não são elevados, a eventualidade de se vir a ser julgado e condenado é remota, a perda da reputação, quando ocorre, é passageira, e é quase sempre neutralizada pela "compreensível vontade"; de ganhar (ou de deixar fazer) um negócio que afinal "reverte a favor"; do país, da economia, da cidade, etc. Em geral, o corruptor activo ou passivo não se vê a enveredar por uma carreira criminal. Olha para a ocasião como uma oportunidade que pode não se repetir e que qualquer um na mesma situação não desperdiçaria. Durante muito tempo os polícias de investigação criminal, treinados para investigar homicidas e bandidos, tiveram dificuldade em colar a imagem de criminoso a pessoas bem vestidas e bem falantes, de classe superior à deles, muitas vezes ameaçando retaliação por via de "ligações com os de cima";.

Em face disto, porque é que em certos países há tanta corrupção e noutros tão pouca? Há pouca corrupção quando se verificam três condições: cultura de distinção entre o público e o privado e prevalência do público sobre o privado; prevenção por via de uma cultura de transparência e de mecanismos de acompanhamento a par e passo dos processos onde pode ocorrer corrupção; combate eficaz ao crime quando ocorre e punição rápida e exemplar. A presença de qualquer destas condições implica leis, instituições e meios; mas implica sobretudo cultura pública de prioridade do bem comum e do Estado como principal garante dele. No nosso país não se verifica actualmente nenhuma destas condições. Nos últimos trinta anos dominou uma cultura-armadilha de instrumentalização do Estado através do discurso anti-Estado. A crítica do Estado, em vez de ter sido utilizada para criar espaços de genuína autonomia da economia e da sociedade civil – espaços que implicam riscos como condição de oportunidades – foi utilizada para criar oportunidades sem riscos mediante o recurso a um Estado-prostituto seguro que, não tendo utilidade geral, pode ser utilizado para servir interesses particulares cuja satisfação supera sempre pagamento. O PSD e o PS contribuíram por igual para a cultura da prostituição do Estado, servidos por uma bateria de comentadores e analistas conservadores que, com uma intensidade sem paralelo na Europa, foram convertendo diariamente a realidade do Estado a menos na ficção do Estado a mais. Inverter este processo durará décadas, e não há sinais de que tenha começado.

Sendo menos um crime de convicção que um crime de oportunidade, a corrupção pode ser eficazmente prevenida, reduzindo as oportunidades de ela ocorrer. As oportunidades têm lugar em quatro domínios relacionados: grandes contratos de obras e de fornecimentos do Estado, parcerias público-privado, urbanismo, financiamento dos partidos. Para qualquer destes casos há medidas de prevenção cuja eficácia está amplamente testada. Para os grandes contratos e parcerias, a criação de unidades de acompanhamento dos contratos constituída por magistrados e técnicos suficientemente especializados para saberem que uma vírgula ou um adjectivo podem significar milhões de euros. O Tribunal de Contas faz hoje fiscalização concomitante mas limitada aos aspectos jurídicos. Ora a corrupção ocorre quase sempre numa zona cinzenta entre o legal e o ilegal, a zona do alegal. Para o urbanismo, a introdução de mecanismos de democracia participativa, nomeadamente do orçamento participativo a nível municipal. Para o financiamento dos partidos, o financiamento público exclusivo.

Quando não prevenida, a corrupção pode ser eficazmente combatida pelas seguintes medidas: demissão imediata dos responsáveis dos institutos de regulação em caso de corrupção na área regulada; selectividade do combate, centrando-o na grande corrupção; criação de equipas de investigação especializadas e multidisciplinares; acesso irrestrito do MP às contas bancárias; protecção de denunciantes ou arrependidos; sistema de guarda em cofre e acesso restrito a inquéritos que atraem a violação do segredo de justiça; punição exemplar dos media por revelações indevidas que destroem prova.

Afirmar a vontade política de eliminar a corrupção e não adoptar estas medidas é pura hipocrisia.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos