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31-05-2006        Diário Económico
A última novidade é uma garrafa que sugere uma experiência de água carbonizada com cola. O paradoxo é evidente.

Até há pouco tempo o princípio "mais é melhor" norteava soberano a organização social moderna. Mas esta fórmula de progresso redunda em "mais do mesmo", e assim mais atenção foi sendo dada às novas qualidades exibidas pelas coisas. Daí que se compreenda a actual ênfase dada à inovação. Mas daí também o culto da novidade, da rapidez, do ‘design’, da marca, etc. Este princípio pode ser resumido como "diferente é melhor".

Servem estas considerações para introduzir um contra-argumento: nem todas as inovações são necessariamente boas. A aceitação da inovação não pode ser acrítica. O custo é uma sociedade estar a enganar-se a si própria; e dentro da sociedade uns estarem a enganar (-se) mais do que outros.

Este artigo trata de modo muito crítico a invenção de uma "nova" categoria de consumo nos produtos de alta-rotação: as "águas" com sabor.

Muitas e conhecidas marcas de água se precipitaram para este sub-mercado quando surgiu o conceito de água aditivada de aromatizantes. Diga-se, aliás, que se trata de uma cópia de uma tendência em voga nos EUA. E o novo segmento entrou em ebulição: com os sinais de crescimento superior à média no mercado das bebidas leves estalou uma corrida pelo mais novo e mais exótico sabor. A última novidade é uma garrafa que sugere uma experiência de água carbonizada com cola.

O paradoxo é evidente. Qual a diferença entre uma "gasosa" e uma destas "águas" artificialmente modificadas? Olhando a composição química, qualquer diferença é mera coincidência. Ou seja, não houve nenhuma inovação. (Qualquer "cokacola" ou "sevanép" tem como primeiro ingrediente a água). Então, se não há distinção substantiva nos atributos dos produtos, a diferenciação é apenas perceptiva.

Os produtores são suficientemente prudentes para não colocarem a palavra "água" no rótulo (antecipando possíveis processos em tribunal?). Mas a associação a marcas com grande notoriedade no negócio da água é evidente. Isto não é inocente, existem efeitos não triviais na psicologia de consumo. A associação à ideia de "água" é uma estratégia inteligente para estender o poder da marca a uma "nova" gama de oferta de modo a maximizar as vendas. Capitalizam-se conotações de pureza e saúde numa época em que os cuidados com o corpo são crescentes. Sabemos da psicologia e da economia que as preferências podem ser manipuladas se o ponto de referência é alterado. O enquadramento fornecido produz uma influência decisiva na escolha do consumidor. E neste caso o ponto de referência criado para o "novo" produto é a água, não o refrigerante.

Nas prateleiras dos supermercados e nos mostradores dos cafés é fácil ver que estas pseudo-águas tendem a ser colocadas entre os refrigerantes e as águas propriamente ditas. Mas este é um posicionamento que induz em erro. Os pais ficam descansados ao deixar as crianças tomar estes produtos abundantemente na ilusão de que são meras águas com sabor natural. E o presente escriba já viu várias vezes idosos a pedirem "uma água com limão" e a ingerirem o líquido sem consultarem o rótulo. Há aqui um problema: os consumidores estão a comprar gato por lebre, especialmente os mais jovens, os menos informados e ainda aqueles que no seu tempo não tiveram direito a uma educação formal.

Estas marcas devem dizer explicitamente que os seus produtos são refrigerantes convencionais e não água pura. Ou então um guardião do consumidor deve obrigá-las a fazer a distinção. Pode ser difícil acusar estas empresas de propaganda enganosa (a ausência da palavra "água" do rótulo está lá), mas é fácil deplorar o posicionamento deliberadamente ambíguo destas bebidas. Esta ambiguidade é danosa. O problema da obesidade ainda não sensibilizou suficientemente esta engenhosa indústria, mas os custos certamente afectarão os consumidores, em especial os mais novos e os mais velhos. Têm de haver escrúpulos por parte das empresas. Têm de haver competências críticas do lado dos consumidores.

É este o oeste selvagem das pseudo-águas. E é sobre este fenómeno que eu e certamente outras pessoas gostariam de saber publicamente o que pensa o Instituto do Consumidor ou a Deco, bem como saber o que vai fazer o secretário de Estado que tutela a área dos direitos do consumidor.

 
 
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