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15-12-2017        Público

A chamada eleição de Mário Centeno para a chamada Presidência do chamado Eurogrupo revela a actualidade de um diagnóstico feito por Boaventura de Sousa Santos na década de noventa. Nele denunciava a “imaginação do centro”, ou seja, o hábito elitista de se pensar em Portugal como se fosse globalmente um país rico, ocultando as realidades de uma sociedade semiperiférica e as suas necessidades específicas de política. Desde então cresceu o fosso entre essa imaginação e a realidade económica de uma sociedade globalmente em processo de periferização. Esse crescimento deveu-se também às opções de política inspiradas por essa imaginação, incluindo a catastrófica adesão ao Euro, privando-nos de instrumentos necessários para o desenvolvimento nos nossos democráticos termos. O que explica então que essa imaginação, da qual não está ausente um complexo de inferioridade em relação aos países ricos e a tradicional superioridade em relação aos concidadãos populares, continue a ter influência?

Uma das explicações reside no facto de, entretanto, terem aumentado as oportunidades para uma parte da elite nacional ir para as instituições em Washington, Bruxelas, Paris ou Frankfurt ou para o sector privado que opera cá dentro a partir do centro; uma migração política dentro de uma zona de grande conforto económico. Deste processo não estão ausentes mecanismos de cooptação, de resto eventualmente antecipados, desejados, quando se está no poder em Portugal: pensar em termos dos interesses do centro quando se está na periferia, julgando de forma conveniente até que isso serve os interesses desta última. Na realidade, uma parte da elite nacional desligou-se material e ideologicamente do país, indo para fora mesmo cá dentro. É como se fosse já pós-popular e pós-nacional.

Dirão, talvez, que Centeno é diferente de Durão Barroso, de Vítor Gaspar ou de Maria Luís Albuquerque. Talvez sim, talvez não. A questão não é pessoal, de resto, é político-institucional. Centeno andará para cá e para lá, entre o centro e a periferia, mas a sua imaginação e a sua realidade estarão cada vez mais no centro. A adaptação de Centeno não será difícil, creio.

A verdade é que Centeno só vai para o Eurogrupo porque Merkel deu o seu assentimento ao que o seu antigo Ministro das Finanças e actual Presidente do Parlamento alemão, Wolfgang Schäuble, apodou de Cristiano Ronaldo das finanças, ou seja, alguém que joga bem pelas enviesadas regras de um jogo definido pela elite ordoliberal alemã, que, como poder soberano da zona, também define as suas excepções, naturalmente. Em primeiro lugar, Centeno aceitou que o sistema bancário português continuasse a ser uma cobaia para testar o princípio europeu do pagam, mas não mandam, ou seja, os contribuintes nacionais pagam pelos desmandos dos bancos, mas o capital estrangeiro fica com um maior controlo de um sistema mais vulnerável a prazo. Em segundo lugar, Centeno apostou no respeito mais do que escrupuloso por regras orçamentais cada vez mais draconianas, cortando até agora o investimento público para valores mínimos e colocando assim os serviços públicos sob nova pressão. Em terceiro lugar, se bem que o economista do trabalho com uma “visão de mercado” das relações laborais, subtítulo de um seu livro onde o poder tende a desaparecer, não tenha tido a oportunidade de aplicar estas suas ideias, a verdade é que a influência de Centeno não será indiferente à persistente recusa governamental de superar a pesada herança da troika nesta área.

É preciso não esquecer que estamos numa Zona Euro intrinsecamente pós-democrática, apostada no reforço da condicionalidade política por via da eventual criação de um Fundo Monetário Europeu, orientada para a centralização política, por via da criação da figura do Ministro das Finanças, e de lógicas de incentivo às reformas ditas estruturais em troca de umas migalhas pecuniárias, dirigidas a alguma elite académica e empresarial. Mário Centeno seguirá – representará – as instruções formais e informais de manuseamento da mais poderosa máquina de liberalização jamais criada.

Note-se, entretanto, que a palavra reforma não tem, nem poderá ter, na escala europeia o sentido social-democrata, de base nacional, que já foi o seu e que Pedro Nuno Santos, Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, procurou resgatar no encerramento do debate sobre o Orçamento de Estado: “O conceito de reforma para a direita é privatizar, liberalizar e desregular. Reforma que é reforma tem de doer. O que o PSD e a direita política em Portugal não entendem é que para nós reformas têm outro significado. Para nós as reformas são avanços, não são recuos. Não é privatizar, é investir; não é liberalizar, é proteger; não é desregular, é inovar.” O conceito de reforma neoliberal está inscrito nas regras europeias desde o final dos anos oitenta. A imaginação do centro, prevalecente em certos sectores da esquerda, só serve para ocultar este facto, que tem destruído a social-democracia no continente, incluindo em parte das periferias, eventualmente em toda elas.

Precisamos, em alternativa, de olhar para a nossa realidade periférica, imaginando a melhor forma de recuperar instrumentos de política para as reformas estruturais progressistas, as que distribuem recursos de cima para baixo e que desenvolvem as forças produtivas deste pequeno país. Uma imaginação do Sul, consciente da tragédia do percurso que continuamos a trilhar graças ao poder da imaginação do Norte. Ainda recentemente um estudo do Observatório sobre as Crises e as Alternativas sublinhava como a temporária recuperação do emprego, de resto mal pago, está concentrada em sectores de baixa produtividade, que condenam o país a uma posição subalterna. Centeno e a sua política não mudaram isto e a sua ida para o chamado Eurogrupo, instituição informal brutalmente descrita por Yanis Varoufakis no seu último livro, não mudará isto. Antes pelo contrário, imagino.
 


 
 
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João Rodrigues



 
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