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25-11-2017        Público

Conta-se que Hegel, cuja filosofia pretendia constituir uma interpretação total e totalizante da realidade, terá sido um belo dia confrontado com um estudante que lhe fez esta simples pergunta: “E se a realidade não for assim?” Hegel, saindo do “Olimpo” da sua complexidade filosófica, terá respondido: “Então, tanto pior para a realidade!”
O surgimento recente, na sociedade portuguesa, do debate em torno do tema da homossexualidade como motivo de rejeição de candidatos ao sacerdócio e da existência de padres católicos com filhos — na sequência de declarações proferidas por um alto representante da Igreja em Portugal na semana passada — poderia constituir uma oportunidade para olhar para a realidade, e não para um “dever ser” castrador e humilhante para os diretamente envolvidos e para a própria Igreja Católica. Neste sentido, o enunciar destas questões constitui uma “saída do armário” (diria antes, “de vários armários”) de um discurso que torna explícita a forma como membros relevantes da hierarquia da Igreja Católica (pois é a posições a este nível que nos referimos ao longo deste texto, e não aos católicos em geral) encaram realmente, não encarando, as questões da sexualidade, da dignidade das mulheres e das famílias nas suas várias formas, mas também a dificuldade em ultrapassar um pensamento em relação a estes temas que não implique o “recuo para o Olimpo” ou, por assim dizer, a tentativa frustrada e visivelmente pouco lógica de conseguir fazer a quadratura do círculo. Senão, vejamos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma, no seu artigo 2.º: “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.” Como é possível compatibilizar os discursos da Igreja Católica em defesa dos Direitos Humanos com esta exclusão manifestamente contrária aos mesmos?

Além disso, não será também legítimo perguntar o que pretende a Igreja fazer relativamente a padres e bispos que sejam homossexuais? Se a questão se relaciona com o celibato obrigatório, nada a distingue das normas que os padres heterossexuais “têm de cumprir”. Se é com a intenção de prevenir situações de pedofilia, pensar que o risco de situações de abuso sexual é menor se não houver padres homossexuais é um raciocínio lamentável, pois a pedofilia atinge tanto pessoas homossexuais como pessoas heterossexuais. E se é verdade que esta questão também não tem relação direta com o celibato obrigatório é, por outro lado, necessário falar do mesmo.
É sabido que, quando o celibato se tornou obrigatório para o clero não monástico, uma vez que os monges e os frades vivem em comunidade e esta questão não se lhes coloca da mesma maneira, pretendia-se que constituísse um sinal de “purificação” de uma Igreja a deixar-se enlear e a criar, ela própria, situações de escândalo, nomeadamente de corrupção, para as comunidades. Será que hoje a afirmação de que o celibato é relevante para manter “o perfil do sacerdote” ainda será interpretada pelos católicos como um sinal positivo? Será que garante o respeito das comunidades pelo padre? Se o padre for corrupto, autoritário, intolerante, tem o respeito garantido pelo facto de ser celibatário?

Além disso, não entra a ideia de que “se o celibato deixar de ser obrigatório, perde-se o perfil do sacerdote” em contradição com a realidade da Igreja Católica de rito bizantino, na qual os padres são ou podem ser casados? Terão eles “perdido o perfil de sacerdotes”? Por outro lado, se o celibato é querido como um valor em si mesmo para se ser sacerdote, poderão todas as pessoas que decidiram viver em celibato candidatar-se a ser padres (desde que não possuam “tendências homossexuais”)?

Estas questões, associadas à forma como a Igreja encara a existência de filhos de padres, tornam (mais uma vez) visível, ainda que de um outro modo, as dificuldades que a mesma tem em equacionar a sexualidade e em reconhecer de facto o estatuto pleno de ser humano às mulheres. Estas dificuldades parecem querer ser sublimadas muito frequentemente através de um discurso idílico sobre a família. Ora, desta vez, não foi isso que aconteceu. E não foi isso que aconteceu porque o caso de um padre que assumiu ter uma filha fez notícia, “saindo assim do armário” uma situação silenciada, normalmente, à custa da renúncia ao contacto com a mãe da criança, a troco de pensões para filhos com os quais, no entanto, os padres não viverão, e da possibilidade de permanecer no sacerdócio (não me refiro aqui a casos em Portugal, porque não possuo esses dados, mas sim a situações concretas minhas conhecidas noutros países europeus).

O facto de existirem muitas situações em que a renúncia à mulher constitui a moeda de troca para continuar a exercer o sacerdócio, por vezes fora do país onde a criança e a sua mãe vivem, “faz sair do armário” a “ideologia de género” de que a própria Igreja “sofre” sem o reconhecer: é que é à luz da “ideologia” que atribui determinados papéis e características às mulheres (neste caso, terem a obrigação de educar os filhos sozinhas, por terem colocado o homem-sacerdote “em pecado”, tal como Eva colocou Adão!) que a Igreja está disposta a expor-se perante o mundo como uma instituição cujo discurso insiste na santidade da família como pilar da sociedade e como “igreja doméstica”, à exceção das situações em que a família seja constituída por uma mulher, um padre e um filho (embora se deva notar que a palavra “mulher” nunca é mencionada nas declarações acima referidas, onde apenas se fala de “conjugalidade).

Nestes casos, os padres “devem assumir a responsabilidade pelo filho”, sim, mas o filho é privado do contacto diário com o pai e a mãe desaparece do cenário devendo viver muda e “como morta” relativamente ao pai da sua criança. É difícil (mas útil) olhar para a persistência de uma dupla moral em sectores e instituições com muita responsabilidade na Igreja Católica, segundo os quais é preferível o silêncio, porque permite a duplicidade, do que a afirmação e a explicitação de identidades e de opções de vida contrárias a uma normatividade com dificuldade em reconhecer que a vida “fora do Olimpo” não é tão (hipocritamente) simples.


 
 
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