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06-02-2007        Comunidade Segura
Aline Gatto Boueri

"Rostos Invisíveis da Violência Armada – Um Estudo de Caso sobre o Rio de Janeiro" é resultado de um ano e meio de pesquisa sobre o envolvimento de mulheres e meninas em variadas formas de violência armada. O livro, que será lançado quinta-feira, dia 8 de fevereiro, traça um panorama regional sobre as vítimas e autoras, o impacto da violência armada em suas vidas e sua luta para reerguer-se e buscar justiça.

O envolvimento masculino em crimes cometidos com armas de fogo é latente e visível. Sua predominância estatística faz com que políticas públicas de enfrentamento do problema ignorem as questões específicas do sexo feminino e com que mulheres e meninas sejam vistas como peças secundárias na engrenagem do crime.

Tatiana Moura, pesquisadora do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, e autora do livro, conversou com o Comunidade Segura sobre as dificuldades de realização da pesquisa inédita, que deu rosto às vítimas e autoras e definiu os próximos passos de um longo caminho pela inclusão do sexo feminino na agenda pública do combate à violência.


O estudo é inédito. Qual é o conceito que ele traz?

A idéia é entender a presença do sexo feminino na violência armada fora do contexto de guerra formal. Procuramos também questionar justamente os conceitos de guerra e de paz, porque a partir do momento em que as mulheres atuam em conflitos armados e há uma utilização de seus corpos para o andamento desses conflitos, não podemos defender a existência de um contexto de paz formal.

Como foi o trabalho de pesquisa que resultou no livro?

O projeto começou em fevereiro de 2005 e o trabalho de campo propriamente dito, em julho do mesmo ano. Partimos de uma pesquisa qualitativa, na qual utilizamos três metodologias diferentes ou, mais concretamente, três abordagens diferentes e seguimos este mesmo critério na organização do livro. A primeira parte trata da análise de estatísticas fornecidas por órgãos públicos; na segunda parte, internas da penitenciária Talavera Bruce, identificadas apenas pelo crime pelo qual foram condenadas, foram entrevistadas; por fim, analisamos questionários distribuídos para mulheres denunciantes da violência que procuravam as Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam). Incluímos também no livro recomendações feitas em um seminário realizado em junho do ano passado, quando a pesquisa preliminar foi apresentada a especialistas.

Pouco se sabe sobre o envolvimento de mulheres e meninas em violência armada. Como a pesquisa traçou esse panorama?


A primeira parte, que fala das formas de envolvimento de mulheres e meninas na violência armada, foi baseada em estatísticas já existentes do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), da penitenciária feminina Talavera Bruce, da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro e do Departamento Geral de Ações Sócio – Educativas (Degase). A partir disso, traçamos um panorama geral do que já existia e do que mudou. Notamos que há uma evolução no número de passagens de meninas pela Vara de Infância e Juventude, por exemplo, mas isso não quer dizer necessariamente que houve um aumento no número de crimes cometidos por elas.

Há diferenças entre as formas e motivos do envolvimento de mulheres e meninas na violência armada?

Por vezes, as mulheres acabam assumindo um papel mais direto nas redes do tráfico, por exemplo. Elas, muitas vezes, têm filhos e já estão viúvas, e por conta disso buscam no tráfico de drogas uma fonte de sustento. Por outro lado, a maternidade pode significar também o abandono completo das atividades criminosas. Mas isso ainda não acontece nas mesmas proporções com as meninas. Elas estão mais ligadas aos trabalhos de base, como endolar a droga e atuar como cargueiras. Elas apontam com mais freqüência a busca pela adrenalina e a obtenção de bens de consumo como motivações para o ingresso no crime.

Isso pode significar que as meninas têm atuação indireta na violência armada?

Quando uma mulher atua no tráfico de drogas em trabalhos de base, como olheiras ou no transporte de armas e drogas, elas se envolvem diretamente na atividade. Resisto em admitir que essa é uma atuação indireta, já que sem esses serviços, o crime não existiria. Ainda quando namoram rapazes do tráfico, elas contribuem para o incentivo à atividade, à medida contribuem para a construção de um tipo de masculinidade violenta desses rapazes. Mas elas também constroem sua feminilidade ao estabelecer essas relações.

Há no livro uma parte que trata apenas da violência doméstica. É possível afirmar que medidas de controle de armas tiveram influência nos índices de violência contra a mulher?

A partir dos questionários respondidos nas Deams, analisamos dados do estudo Brasil: as armas e as vítimas (Instituto de Estudos da Religião – Iser). Estudamos a influência do Estatuto do Desarmamento nesse tipo de agressão, armada, ou ameaça contra a mulher. O resultado é que o crime mudou de lugar. Como o Estatuto restringiu o porte de armas, mas não proibiu a posse, diminuiram, em algumas cidades do Brasil, as mortes de homens no espaçoo público. No entanto, a diminuiçãoo da taxa de mortalidade de mulheres, que ocorre freqüentemente em conseqüência de violência intrafamiliar, foi menor.

Você acredita que um passado de violência doméstica pode ter influência em um futuro envolvimento na violência armada nas ruas?

Acredito que uma sucessão de violências possa influenciar no envolvimento de mulheres (e de homens) na violência armada. A violência social, de gênero, econômica. Aplicamos um questionário padrão, respondido voluntariamente por cerca de 600 mulheres que denunciaram a violência em oito das nove Deams. A arma de fogo aparece como instrumento de produção da desigualdade na relação, porque ela intimida a mulher vítima da violência e faz com que ela estabeleça com o parceiro uma relação de medo.

Como o livro trata a questão das mulheres que não se envolvem diretamente, como vítimas ou autoras, na criminalidade armada, mas ainda assim sofrem suas conseqüências?

Enquanto mães, irmãs e esposas, elas também sofrem as conseqüências diretas desta violência. O impacto da perda em suas vidas é econômico, social, psicológico e físico.
Há no livro uma parte que trata apenas de mulheres que perderam entres queridos vítimas da violência por armas de fogo. É o resultado de mais de um ano de entrevistas pessoais com cerca de 20 mulheres, que fizeram questão de se identificar e contar suas histórias na primeira pessoa, com a segurança de quem não tem o que esconder. Quando ocorrem chacinas, por exemplo, essas mulheres ficam esquecidas após o crime, ainda que ele tenha visibilidade. Considero que então elas se envolvem em continuuns de violência porque a partir daí começam para elas outras histórias de violência. Esta parte do livro trata dos impactos da perda e das formas de superação da dor e da luta contra a impunidade. Essa pesquisa resultou em um grupo de trabalho que se reúne periodicamente, desde novembro. É um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC - Ucam), em parceria com o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

Como a pesquisa trata da maior visibilidade do sexo masculino no envolvimento com violência armada?

No Rio de Janeiro, em 91% dos crimes cometidos com armas de fogo os envolvidos são do sexo masculino. É realmente difícil convencer o poder público e a polícia a olhar com maior atenção para os 9% restantes.Tentamos dar um rosto a essas mulheres e mostrar que o lado invisível dessa violência está, na verdade, adjacente a ela.

Você acredita que estamos próximos da criação de políticas públicas que encarem a violência com um recorte mais atencioso para a questão do gênero?

Espero que a pesquisa e outras que possam surgir contribuam para a criação de políticas públicas que atendam às necessidades específicas de mulheres envolvidas e ameaçadas pela violência armada. É preciso encarar também a violência doméstica no âmbito da segurança pública. O que acontece hoje em dia é o caminho inverso

E os próximos passos?

Sentimos necessidade de ampliar a pesquisa na parte que trata do envolvimento de mulheres e meninas na violência armada. Para isso, já está em andamento uma pesquisa comparativa entre Rio de Janeiro, San Salvador (El Salvador) e Medellín (Colômbia). A idéia é traçar um perfil geográfico da tipologia e motivações do envolvimento feminino na violência armada e entender as formas de construção de feminilidades a partir dele.


http://www.comunidadesegura.org/?q=pt/node/31830

 
 
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Tatiana Moura