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03-11-2017        Público

No próximo domingo, dia 5 de novembro de 2017, a sirene tocará mais longamente na Praça da Sé em Mariana, Minas Gerais, Brasil. Nesse dia cumprem-se dois anos sobre a ocorrência do maior desastre mundial com detritos de uma mina. E o ritual que os deslocados, os atingidos das diferentes localidades a jusante da barragem do Fundão, ativam todos os dias 5 de cada mês naquela praça será mais sentido. O silêncio pautado pelo ecoar da sirene tocará fundo nos que há dois anos perderam tudo. Perderam o seu modo de vida, as suas casas, os animais, o sentido da vida, tudo soterrado por um mar de uma lama contaminada que percorreu mais de 600 quilómetros para ir desaguar no Atlântico. E atingidas foram comunidades de camponeses, de produtores de leite, comunidades indígenas e comunidades piscatórias.

Logo em dezembro de 2015, um mês após o desastre originado pela empresa de mineração Samarco, uma filial de duas das maiores empresas mineradoras do mundo, a Vale (brasileira) e a BHP Billiton (anglo-australiana), o Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas, na sequência de uma visita ao terreno, alertava para os riscos para a saúde humana das lamas nos locais afetados, tecendo duras críticas à Samarco pela inexistência de planos de emergência ou de simples sirenes de aviso para as populações.

Já em 2017, com fundos provenientes de donativos recolhidos pelo movimento Rio de Gente e geridos pela Greenpeace, foi possível realizar o estudo Avaliação dos Riscos em Saúde da População afetada pelo Desastre de Mariana, coordenado pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade (ISS). Incidindo sobre cinco áreas de trabalho, a saber, água, fauna, flora, impactos sociais e direitos humanos, o estudo é devastador nas suas conclusões. Em muitos lugares os lençóis freáticos estão contaminados, obviando à prática de qualquer atividade agrícola ou à captação de água para consumo humano. A desestruturação das comunidades locais foi total, morando famílias ainda dispersas em hotéis, casas alugadas, quintas ou outros espaços. Há uma vaga promessa de construção de um lugar de reassentamento em 2019.

Tomei contacto com esta realidade integrado numa visita de estudo de uma equipa da Fiocruz - Fundação Oswaldo Cruz, uma das instituições brasileiras mais prestigiadas no estudo da saúde coletiva, em meados do passado mês de outubro de 2017.

A realidade no terreno não de distingue de muitos de outros lugares atingidos pelo capitalismo de desastre, pela desresponsabilização de multinacionais que pedem sacrifícios aos habitantes a troco de um putativo desenvolvimento. Aqui como noutros lugares do planeta, os acontecimentos extremos, como desastres e catástrofes, mostram o trabalho político para colocar os grupos e os indivíduos descartáveis fora dos laços sociais e das comunidades nacionais imaginadas.

Entremos na aldeia de Bento Rodrigues, o lugar mais próximo da barragem e onde morreram 19 pessoas. O acesso ao local só é possível passando uma barreira de segurança da Samarco. Tudo está destruído e vê-se claramente a altura do rio de lama que passou, bem marcada nos edifícios que resistiram. A paisagem é cruelmente pautada pelas cruzes ali deixadas em memória das vítimas por um grupo de ativistas.

E entre os destroços, a verdadeira sinédoque do capitalismo de desastre. A aldeia pode estar destruída, os seus habitantes poderão nunca mais voltar, errando distantemente na sede do concelho, sonhando com um lugar no futuro que poderão chamar seu, mas há uma igreja edificada no período colonial, a Igreja de São Bento, padroeiro de Bento Rodrigues, que está envolta numa estrutura protetora, e cuja reconstrução a Samarco, metamorfoseada agora na Fundação Renova (entidade que trata do pós-evento, para se proceder lentamente à dissociação com a Vale e a BHP Billion), financia. As pessoas e o seu futuro podem interessar pouco, mas o património esse projeta a imagem e o prestígio das empresas e deve ser preservado e recuperado. Ficará uma igreja no meio do nada, mas lá ficará a assinalar um pretérito modo de vida.

Como nos disse um residente local, “alguns antigos moradores não se sentem bem a virem cá. Nós perdemos o lugar. Eu tento resistir, já plantei uma horta, é triste mas gosto de andar por aí”. E como afirmou um outro morador: “O nosso coração está naquele lugar. Quem é da roça não troca a vida da roça pela vida da cidade”. E isto não ligando às dezenas de placas de sinalização com os dizeres “Proibido permanecer nesta área”, algo incompreensível para os técnicos da proteção civil municipal que nos acompanharam e que alertaram constantemente para os possíveis riscos de voltar e estar na aldeia.

Mas, basta olhar para as ruínas da antiga escola e ler o que alguém escreveu numa das paredes que ainda permanece de pé: “Bento Rodrigues. Saudades”.


 
 
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José Manuel Mendes



 
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