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27-09-2005        Público
Fenómenos como o de Fátima Felgueiras ou Avelino Ferreira Torres são sintomas preocupantes do "populismo que atravessa o país". Quem o diz é Fernando Ruivo, coordenador do Observatório do Poder Local, para quem o desamparo que os cidadãos sentem perante o Estado é propício ao aparecimento de novos "salvadores do povo". Entrevista por Nuno Amaral e Álvaro Vieira e Carla Carvalho Tomás (fotos)


Como perspectiva as alterações à lei que abrem caminho aos executivos monocolores?
A acontecer, será muito, muito pior. Com mais autismos. Não haverá quem diga aos jornalistas o que se passa dentro dos executivos. Não haverá fiscalização, nem contraditório, nem oposição. Isso pode ser perigosíssimo, ainda por cima num cenário em que a limitação de mandatos parece estar longe. E vai agudizar-se a falta de participação dos cidadãos na vida pública.
Concorda com a limitação de mandatos?
Absolutamente. Vem é tarde, porque, daqui a muitos anos, ainda vamos ter muitos "dinossauros". O nosso problema é que, na fase política em que estamos, já pouca gente se disponibiliza para exercer uma actividade política, por causa da descredibilização da classe e porque ganham pouco.
Volta-se agora a discutir a regionalização. Isso significa que as áreas metropolitanas ficam na gaveta?
Reformar o território passa por uma reforma do Estado. Não vale a pena andarmos a fazer remendos. Neste momento, temos as regiões na Constituição, os municípios e as juntas de freguesia, às quais só agora começamos a dar atenção. Porque não revitalizar um pouco também as freguesias? Até porque o perfil do presidente de junta já não corresponde ao perfil traçado por Aquilino Ribeiro, já não é só o homem da tasca ou o merceeiro.
E as CCDR? É usual ouvir-se dizer que não servem para nada.
São um patamar fundamental. Mas têm vindo a perder determinadas funções. Há aqui uma salgalhada que tem de se definir. Temos as regiões na Constituição, as CCDR, os municípios, as comunidades urbanas, as comunidades intermunicipais e as áreas metropolitanas, em muitos casos onde não há metrópole de espécie alguma. Não estou contra as comunidades urbanas ou intermunicipais, nem contra as áreas metropolitanas, acho é que são um exagero. Sem regionalização, isto é um saco de gatos, porque não há um presidente regional eleito que impeça o excesso de competitividade entre áreas metropolitanas. Na Região Centro, por exemplo, há uma certa agressividade entre Coimbra, Aveiro, Viseu, Castelo Branco. E claro, um governo regional eleito tem um corpo político. Com uma atitude sobre o que se devia e se pode fazer em termos regionais.
Fátima Felgueiras aparece como salvadora do povo perante a crise, perante o mal, perante a desgraça, e beneficia da falta de auto-estima, aparecendo como a salvadora. É o já chamado "efeito Evita Péron". As pessoas sentem que os que estão no Governo não as auxiliam, não fazem nada, e surge uma Fátima Felgueiras, com quem se cruzam na rua, que os vai pôr na ordem.
Depois de mais de vinte anos a estudar o poder local em Portugal, olha com muita preocupação para o desenrolar destas autárquicas. Fernando Ruivo, de 54 anos, coordenador do Observatório do Poder Local, defende com veemência a limitação dos mandatos dos autarcas e diz que os executivos monocolores são um perigo para a democracia. Nesta entrevista, o sociólogo afirma que fugiu sempre à clarificação do financiamento das autarquias e sustenta que, sem regionalização, as áreas metropolitanas transformam o país "num saco de gatos".
Como encarou o processo em torno do regresso de Fátima Felgueiras?
A questão é legalmente inatacável, o problema não é jurídico é ético. Os pressupostos da prisão preventiva foram-se à vida. Depois há toda uma carga simbólica. O facto de Fátima Felgueiras estar em liberdade belisca o conceito de justiça. Isso só reforça a imagem de impunidade dos políticos. Tenho quase a certeza que ela vai ganhar.
Até pela recepção apoteótica que teve.
Aquela recepção foi também empolada pelo facto de se chamar Fátima. O culto mariano está muito entrosado na mentalidade das mulheres. Elas vêem-se utilizadas pelos homens e Fátima Felgueiras representa a luta contra o lado masculino do poder. Repare que a manifestação era encabeçada por mulheres. Fátima Felgueiras aparece como salvadora do povo perante a crise, perante o mal, perante a desgraça, e beneficia da falta de auto-estima dos portugueses, aparecendo como a salvadora, a populista. É o já chamado "efeito Evita Péron". As pessoas sentem que os que estão no Governo não as auxiliam, não fazem nada, e surge uma Fátima Felgueiras, com quem se cruzam na rua, que os vai pôr na ordem. Isto leva-nos a concluir que o processo de racionalização da política e da democracia não está feito. A política está completamente personalizada.
Além disso, no dia seguinte ao regresso de Fátima Felgueiras, a campanha arrancou em força.
Estava tudo preparado. Só não percebe quem não quer. No caso de Felgueiras a questão é mais flagrante. Mas, e os outros candidatos? Quem montou a campanha, quem paga os outdoors e a frota de carros de propaganda dela, de Valentim Loureiro [candidato em Gondomar] e de Isaltino Morais [Oeiras]? Nos casos de Gondomar e de Oeiras, o PSD resolveu entronizar uma regra que devia ser de ouro: quem é suspeito não se deve candidatar a cargos políticos. E o PSD fê-lo, mesmo correndo o risco de perder as Câmaras de Oeiras e Gondomar. Infelizmente, Portugal é um manancial espantoso de análise sociológica e de ciência política. Infelizmente, porque não é assim que arrancamos da cauda da Europa, nos mais diferentes sectores, desde o emprego à produtividade, passando pela eficácia do sistema político.
E quanto ao caso de Ferreira Torres, em Amarante?
É extremamente preocupante. Mostra que o país está a ser atravessado por um fenómeno de puro populismo. Com as crises institucionais que o país atravessa e com o descrédito da política, se não estivéssemos na Europa, arriscávamo-nos a mergulhar num cenário semelhante ao da 1.ª República, em que os golpes de Estado se sucederam até que houve um, em 1926, que instalou o Estado Novo. Por fenómenos semelhantes ao que estamos a atravessar, de recurso a mecanismos populistas em territórios com a identidade absolutamente esmigalhada, é que o nazismo e o fascismo chegaram ao poder. Em fases como esta, os cidadãos só precisam de alguém que atice a chama. E desconfio que há muito mais territórios no país que estão a ficar preparados para populismos e paternalismos.
Como classifica, de forma geral, a qualidade dos autarcas?
Há alterações discursivas, mas que não se reflectem na prática. Os autarcas continuam a não gostar de abaixo-assinados e a rodear-se de um círculo íntimo de pessoas influentes, entrando em curto-circuito com a comunidade. E continuam confinados a gabinetes e a elites. Fora dos períodos eleitorais, os autarcas não mantêm os apertos de mão. Agora até há autarcas que não apertam a mão ao adversário, mas que vão para a rua apertá-la a centenas de pessoas.
Refere-se ao episódio Manuel Maria Carrilho?
Ao recusar apertar a mão a Carmona Rodrigues, Carrilho ficou visto como um menino birrento. E quem faz isso não tem grandes hipóteses de conseguir que os lisboetas se identifiquem com ele. Vejamos: como é que um candidato se insere no espírito da comunidade? Indo ao futebol, aos bombeiros, passeando nas ruas das cidades, ou seja, infiltrando-se no espírito do lugar, aparecendo como alguém em quem se confia, como o melhor de entre iguais. [O sociólogo] Roland Barthes dizia que as pessoas quando vão votar é como se estivessem a votar neles próprios. Ora, em Lisboa Carrilho aparece como um aristocrata. Ele já devia ter aprendido que é um erro.
Considera que, nas autárquicas, sobressai mais a figura do homem em detrimento da do partido?
A distanciação do contexto político-partidário nota-se cada vez mais. Nalguns cartazes espalhados pelas cidades, mal se vêem os símbolos dos partidos, ou seja, há uma fuga dos candidatos locais à partidarização das eleições. E penso que, nestas eleições, o voto vai ser menos ideológico. No caso do BE, o candidato de Lisboa, Sá Fernandes, que é pouco conhecido, excluindo entre as elites, vai buscar votos de protesto. Já o PCP vai beneficiar muito da figura afável e firme de Rubem de Carvalho e da imagem extremamente afável, magnífica, do bailarino-estalinista Jerónimo de Sousa. E a questão da imagem é crucial. Poucos cidadãos conhecem os programas eleitorais.

 
 
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