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31-03-2001        «Voz do Trabalho» - Liga Operária Católica/ Movimento de Trabalhadores Cristãos
Ao contrário do que se possa pensar, só a partir do século XVIII o trabalho começou a ser olhado como actividade digna de reconhecimento social. Ao longo da Antiguidade e até ao final da Idade Média o trabalho foi fundamentalmente encarado como desprezível, socialmente conotado com a pobreza e com os segmentos da população despojados de direitos. A ética contemplativa e a dimensão espiritual eram sobrevalorizadas, tal como a noção de ócio (otium), em aberta oposição à ideia de negócio (negotium = negação do ócio). A condenação e desprezo dos que eram pagos para trabalhar – sobretudo escravos e servos – reflectia-se também na desconsideração dos que se dedicavam ao negotium.
A partir da vaga de fundo na mudança de mentalidades introduzida pelo Renascentismo nas sociedades da Europa Ocidental, e que lentamente se foi expandindo ao longo dos séculos XVII e XVIII, uma nova e moderna noção de trabalho viria a nascer. A revolução burguesa que estava em marcha levou a que o trabalho passasse a ser visto como uma actividade central na criação de riqueza e de bem-estar das nações. Tal alteração prende-se ainda com o nascimento de uma concepção liberal de indivíduo: o indivíduo racional, o homo economicus, fundado na apologia da actividade comercial, cujas raízes remontam ao protestantismo, dada a sua apologia do enriquecimento como sinal de acesso à salvação espiritual.
É só no século XIX que, após a Revolução industrial inglesa e com a ajuda dos economistas clássicos, se torna inquestionável o triunfo da moderna sociedade industrial. A ideia do homo faber, o homem que se afirma, se descobre e se realiza através do trabalho, ganhou plena consistência. Como referiu Marx, o trabalho, ou melhor, a força de trabalho, tornou-se então uma mercadoria e a classe trabalhadora poucas vantagens retirou do triunfo do capitalismo moderno. A não ser a possibilidade de lutar colectiva e organizadamente contra um sistema que – apesar dos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade – tratou de aperfeiçoar e criar novas formas de exploração do homem pelo homem. O trabalho industrial torna-se mais mecanizado e emerge uma classe operária mais homogénea, concentrada e dependente da máquina. Paradoxalmente, ganham também expressão novos espaços culturais e ambientes industriais onde germinam as culturas operárias e movimentos sindicais capazes de resistir e lutar contra as condições de vida degradantes em que se encontravam largos segmentos do operariado. A influência da doutrina marxista nos meios sindicais contribuiu para que os sectores mais politizados da classe trabalhadora dinamizassem uma identidade colectiva – «de classe» – positivamente valorizada e que se propunha guiar a humanidade para uma sociedade «perfeita» e liberta de injustiças – o socialismo. Ilusões efémeras, mas que por escassos períodos históricos revestiram o estatuto de «operário» de uma poderosa aura de sedução e respeito social.
Todavia, enquanto tais processos perdiam fulgor no terreno político a partir dos finais dos anos 60 (no caso português, por razões conhecidas, o mesmo ocorreu já na segunda metade dos anos 70), tinham entretanto surgido novas modalidades de trabalho e novos direitos tinham sido conquistados com o triunfo do Estado-providência. Na verdade, a emergência da chamada sociedade de consumo tem vindo nos últimos trinta anos, por um lado, a retirar centralidade ao factor trabalho em beneficio do consumo, e, por outro, a introduzir novas clivagens e segmentações no mercado de emprego. Em Portugal, o sector dos serviços tem-se expandido imenso, sendo o funcionalismo público um dos segmentos onde os direitos e a segurança no emprego foram mais preservados. Mas, para além de também aí as coisas estarem a alterar-se, o carácter rotineiro e burocrático de muitas das actividades nele desenvolvidas impedem que este sector possa ser considerado como um exemplo de dignidade no trabalho.
A partir dos anos 80, fenómenos como a crescente globalização da economia, a mobilidade e flexibilidade dos mercados, os programas de reestruturação de empresas, a privatização de diversos sectores e serviços, a instabilidade do mercado de trabalho, bem como o aumento das situações de precaridade – sub-emprego, trabalho atípico, trabalho infantil, contratos a prazo, etc. – traduzem-se no aumento das situações de hiper-exploração, de desrespeito pelos direitos laborais e abusos de poder de toda a ordem que se multiplicam à escala mundial. A dignidade do trabalho está por isso ameaçada. Porventura hoje mais do que nunca. Se o trabalho é a principal fonte de vida, de criação de riqueza e de oportunidades de reconhecimento social, é cada vez mais urgente dotá-lo de condições que garantam a sua humanização, ou seja, dotá-lo de meios que impeçam que os portões das fábricas continuem a ser a barreira para lá da qual os direitos e a dignidade humana são sistematicamente torpedeados.


 
 
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Elísio Estanque