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07-02-2005        Jornal de Notícias
Apesar das mudanças em curso colocarem em causa os velhos sistemas estáveis da actividade produtiva e administrativa, as lógicas de funcionamento burocrático subsistem em Portugal e estão a corroer a vida nacional. Trata-se de um modelo sócio-organizacional cuja génese remete para factores históricos e culturais. Enraizado nas empresas e instituições, criou as suas próprias estruturas e inércias. Reproduz-se sob a forma de relações paralelas de poder, que operam por detrás do lado formal das organizações. No plano dos comportamentos, a lógica burocrática dá lugar a práticas que levam o indivíduo a esquecer o objectivo final e a focalizar a sua atenção apenas na tarefa imediata, na satisfação de uma pulsão emocional, no dividendo material ou simbólico que obtém do seu par ou do seu chefe, no conforto que encontra na previsibilidade e na necessidade de rotina. O desafio e o sentido de risco são rejeitados em absoluto, promovendo-se, em vez disso, o conformismo e a mediocridade.
No caso português, estes processos assumem alguns contornos particulares resultantes, desde logo, do contexto político em que cresceu o Estado providência no nosso país. Mas, tal contexto não pode justificar a ausência de soluções para a reforma da administração pública, trinta anos depois. Além disso, as medidas políticas dos últimos anos pouco têm contribuído para conferir maior eficácia ao sistema e, em muitos casos, têm até acentuado as tendências de bloqueio. Seja como for, o rápido crescimento do sector público em finais dos anos setenta, com a absorção de funcionários sem qualificação e com grande estabilidade de emprego, ajudou a estruturar uma cultura do trabalho assente na defesa obsessiva dos direitos adquiridos, ambiente propício ao alastramento da burocracia.
Acresce que tal cenário tem vindo a servir de cobertura à criação de um novo dualismo, claramente injusto, entre funcionários de carreira, com vínculo permanente (e muitas vezes com promoção assegurada), e a nova geração de trabalhadores, em geral muito qualificados mas em regime precário, que se vêem impedidos do acesso a esses mesmos direitos. Aspectos tão importantes como, por exemplo, as situações de incumprimento das leis laborais, o efeito perverso que advém dos cargos de nomeação política ou os cargos executivos que funcionam em rotatividade (por exemplo no ensino) contribuem para agravar o laxismo existente. Nuns casos porque subvertem o critério do mérito, noutros porque carecem de poder efectivo para alterar o que quer que seja.
A lógica burocrática cresceu e instalou-se sobretudo entre os sectores mais rígidos e estáveis, mas o efeito de contágio repercute-se mesmo nos serviços mais eficientes, operando num plano subterrâneo da vida dos departamentos e das organizações. É um ciclo vicioso que alimenta o espírito de "funcionário";, com os seus tiques, rituais e comportamentos cínicos, em que cada um procura apenas justificar que está ocupado (muitas vezes por mera simulação) e afirmar ou defender a sua posição. Não existe qualquer envolvimento dos níveis intermédios e de base nas decisões estratégicas (em geral inexistentes), pois o poder de decisão é sempre centralizado e os processos de consulta quase não existem – ao chefe só se diz o que ele quer ouvir!
Esta cultura burocrática tem como reverso as estruturas oligárquicas de exercício do poder ou o puro despotismo. Por um lado, é a emulação dos chefes e líderes, devido à absoluta necessidade de protecção e tutela. Por outro, o distanciamento subjectivo destes em relação às bases ou aos subordinados. O resultado é o proliferar do servilismo, da dependência, do autoritarismo, do apego à pequena migalha de poder e às fidelidades incondicionais. Cria-se uma espécie de autismo fundado na defesa irracional do status quo, que perde de vista a realidade envolvente. E se esta lógica se rompe, das duas uma: ou estala o conflito ou insinua-se o medo e alimenta-se o ressentimento pessoal, a vingança e inveja, etc., reiniciando-se de novo o mesmo ciclo que neutraliza a eficácia e impede a mudança.
É isto que se passa em grande parte das nossas instituições, empresas, serviços, associações, partidos políticos, etc. Alterar este estado de coisas é sem dúvida uma tarefa difícil. Requer uma revolução de mentalidades que só pode ocorrer no espaço de várias gerações. Mas é urgente iniciá-la quanto antes.

 
 
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Elísio Estanque