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07-10-2005        Público
A popularidade dos diversos candidatos a contas com a justiça insere-se na mesma linha de fenómenos relacionados com protestos locais ou reivindicações de autonomias concelhias, por exemplo, que periodicamente ocorrem no país. Para além da velha clivagem entre o paroquialismo e a República, alguns desses protagonistas agora vencedores (ou perto de o serem) devem o seu apoio popular não só ao crescente descrédito do Estado democrático, mas principalmente a um problema de identidade local em perda. A perda do tradicional sentido de partilha e de comunhão promove representações subjectivas de índole bairrista fundadas na oposição maniqueísta entre a proximidade e a distância, entre os "nossos" e os "outros", entre os "santos" da terra e os "corruptos" da classe política.
Independentemente da bondade das reivindicações localistas, esta questão é bem ilustrativa do modo como os portugueses se posicionam perante o poder e as instituições públicas. Mostra como as identidades colectivas – e por via delas a confiança política – se constroem e redefinem cada vez mais na base de sentimentos e impulsos irracionais e cada vez menos na base da informação e consciência crítica dos cidadãos.
É conhecida a atitude paradoxal das classes populares face aos poderes instituídos: por um lado, uma atitude de dependência e sacralização e, por outro, de desconfiança e distanciamento. A ela junta-se hoje o acelerado processo de desenraizamento e fragmentação das identidades de base comunitária perante a crescente individualização das relações sociais, com a correspondente sensação de anonimato e de marginalização perante os centros de decisão política nacionais.
A percepção negativa acerca da "classe política" funda-se, como é sabido, numa lógica de dissonância cognitiva em que os segmentos sociais que identificam os poderes públicos com os "tachos" são os mesmos que vêem como "bom" o autarca que ofereceu o emprego à filha ou à sobrinha a troco de uns tantos votos prometidos. Há que apoiar aquele que dá a cara e é "dos nossos", aquele que "protege" os interesses da terra contra os poderosos e contra as instituições do Estado.
O fenómeno amplia-se à medida que cresce a atenção que as televisões lhe dedicam. Sabe-se, de resto, quanto o sentido identitário é hoje redefinido através dos massmedia. Assim, quanto mais mediatizado se torna o assunto, mais a comunidade tende a aderir ao discurso de vitimização que os visados alimentam de si mesmos. Porque eles projectam para o exterior o nome de uma comunidade que se sente ignorada ou ameaçada pelo poder central. É praticamente irrelevante o conteúdo daquilo que dizem já que o poder das imagens televisivas produz um efeito simbólico de afirmação (mesmo fictícia e ilusória) de uma identidade colectiva que mede a importância da sua existência (do seu "nós") pela sua inscrição no mapa televisivo e pelo embaraço que, com isso, está a causar a esse "eles" que está lá em cima e que supostamente a persegue. O juízo está feito à partida e é definitivo: quem está perto de nós e nos defende, necessariamente desencadeia ódios dos poderosos ou do "sistema"; ou melhor, se desencadeia ódios é porque nos defende! Mais: mesmo quando a obra feita era pouco palpável, mesmo quando os políticos locais eram, antes, pouco fiáveis, passam a sê-lo totalmente no preciso momento em que começam a ser visados pela justiça e a sua imagem surge nas notícias por motivos desse teor.
A identidade da comunidade é em larga medida imaginária. Ela constrói-se por oposição a um "outro" (ameaça real, ou fictícia, tanto faz) que a pretende atingir na sua dignidade. Esse outro é o Estado, o governo, a justiça ou o poder de Lisboa, que neste caso são sinónimos. Ele aparece como o elemento "satânico" cujo reverso é a "santificação" da sua putativa vítima. E se o dramatismo da situação aumenta criam-se as condições ideais para a reemergência dessa mítica e nostálgica entidade colectiva que é comunidade local reencontrada sob a forma de multidões exaltadas. Fortemente abalada ou perdida nas brumas de uma obscura e intangível modernidade urbana, a reminiscência nostálgica do passado rural vem ao de cima. É neste processo de catarse que se expiam os défices identitários e se apazigua o subconsciente colectivo. No meio de tudo isto, em vez da consciência crítica de comunidades democráticas e participativas, floresce a demagogia barata e o populismo fácil e acrítico, que fragilizam a democracia no seu conjunto.

 
 
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Elísio Estanque