Centro de Estudos Sociais
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24-11-2005        Campeão das Províncias
Incoerência e luta de interesses minam as instituições e o poder político. A economia liberal, desregrada do ponto de vista do sociólogo Elísio Estanque, tem levado a uma conflitualidade permanente, enquanto os sindicatos estão cada vez mais enfraquecidos. O diagnóstico feito pelo investigador do Centro de Estudos do Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra não é optimista, mas o docente acredita que ainda "seremos capazes de ultrapassar esta fase menos boa". Para tal, acredita que a retoma económica seja fulcral, mas não menos importante, defende, é "uma cidadania mais activa".

Campeão das Províncias (CP) – Os portugueses estão descontentes com o país, com os políticos, com a conjuntura económica. Pode-se dizer que Portugal está perante uma crise existencial?

Elísio Estanque (EE) – Penso que os portugueses estão descontentes, porque há um cenário negativo em termos económicos e sociais para o qual não se vê uma saída no imediato e num contexto em que nos exigem sacrifícios. Penso que há um certo sentimento de frustração dos cidadãos relativamente aos políticos e um distanciamento em relação à vida política. Acho que isso é negativo e que é sinal de um certo fatalismo, uma certa falta de iniciativa das pessoas em geral.

CP – A crise é geral, mas os efeitos parecem ser mais agudos em Portugal. Os portugueses serão menos capazes que outros cidadãos?

EE – Não acho que se possa dizer que os portugueses são menos capazes que outros. Acho é que os portugueses têm alguns problemas que são comuns a todos e têm outros que lhes são próprios, sendo que algumas vezes os problemas que são comuns a todos, vividos num país com as características em que Portugal se encontra, se tornam mais graves.

CP – Acha que o descrédito do sistema político está relacionado com o facto de alguns agentes políticos estarem a contas com a justiça?

EE – Penso que contribui. Penso que há uma certa indefinição estratégica do país e das suas principais políticas nas últimas décadas que vem oscilando consoante as conjunturas políticas e o partido no governo e que, por vezes, os diferentes sub-sistemas parecem estar em contradição. Em relação ao sistema judiciário e ao sistema político, penso que os problemas que têm vindo a lume nos últimos tempos são expressão da dificuldade de definição de um conjunto de linhas estratégicas de desenvolvimento do país, que têm sido pautados por muita incoerência, instabilidade, luta de interesses, interesses imediatos por parte das forças políticas, mas também das forças económicas, dos vários lóbis e das várias pressões que são exercidas constantemente sobre as várias instituições e sobre o poder público. Isso contribui de facto para o cansaço. Neste momento, parece-me haver uma espécie de uma luta subterrânea entre o sistema judicial e o sistema político.

CP – Tendo em conta as últimas eleições, há de facto um divórcio entre o sistema judiciário e a opinião pública ou esta é manipulada?

EE – Obviamente em sociedade a opinião pública é sempre influenciável. Mas mais que ser manipulável ou influenciável, acho que a opinião pública é fraca em Portugal. Não há uma opinião pública forte. Os jornais chegam apenas à elite, pelo menos os jornais de qualidade, que são aqueles que poderiam e podem contribuir para uma maior consciencialização em relação aos problemas. Os jornais são tanto mais influentes quanto mais vazio é o seu conteúdo. Assim como os programas de televisão que têm tanto mais audiências quanto menos qualidade possui a mensagem e o tema que tratam, o que é preocupante. Parece haver uma desconfiança grande em relação a uma série de agentes do sistema judiciário, o que significa que uma boa parte dos cidadãos desconfia do Estado, das instituições e da sua vontade, da sua transparência. Parece que o facto de surgir um conjunto de casos de oportunismo, interesses mesquinhos ou corrupção promovem facilmente uma tendência para a generalização e para se fazer uma avaliação negativa de toda uma classe política. Mas muitos dos problemas do sistema judiciário deriva do facto de haver uma procura maior dos tribunais em relação há alguns anos atrás.

CP – Como é que vê o futuro do país?

EE – Vejo com alguma apreensão o futuro, mas também não posso deixar de acreditar que seremos capazes de ultrapassar esta fase menos boa. Portugal é um país inserido na Europa que é vulnerável aos problemas económicos e às tendências de crescimento ou de contracção económica e portanto acredito que se houver uma retoma na Europa ela far-se-á sentir em Portugal.

CP – Essa é a solução dos problemas do país? É apenas preciso que a economia funcione?

EE – Não é apenas, mas a economia é um elemento bastante importante, porque se as pessoas não tiverem emprego, se não virem perspectivas de puderem progredir e melhorar a sua situação de vida, ai o pessimismo tenderá a agravar-se muito mais. Evidentemente que não concordo que a economia seja por si só a solução para todos os males. Há outras coisas importantes a fazer no país. Talvez a classe política e a organização dos partidos precise de um abanão para poder alterar alguns dos seus procedimentos habituais, que na minha opinião são bastante minados por influências, compadrios e lógicas na base de fidelidades um pouco irracionais, quando o que precisamos é de uma cidadania mais activa, que os cidadãos estejam de facto mais informados e com um espírito crítico capaz para defenderem melhor os seus interesses e contribuírem activamente para resolver alguns dos problemas. Mas o facto é que há uma tendência na sociedade portuguesa para transferir para o Estado todas as responsabilidades. Por um lado, toda a gente facilmente acusa e queixa-se dos políticos, poderosos e instituições do Estado porque não cumprem, mas perante qualquer problema uma boa parte dos portugueses acha que deve ser sempre o Estado, o poder e o Governo a resolvê-los, quando uma parte pelo menos desses problemas, pelo menos os mais próximos, teriam solução se houvesse uma postura de maior participação activa por parte das associações e organizações dos cidadãos. Neste aspecto também acho que os responsáveis do poder local na sua maioria não suscitam e não fazem aquilo que eu penso que podiam e deviam fazer que é criar mais mecanismos para que os cidadãos tenham um papel mais activo na vida pública, utilizando por exemplo o referendo a nível local e a discussão pública.

CP – Os problemas laborais agravaram-se nos últimos anos. Acha que os sindicatos precisam de se reinventar para não perderem influência como parceiros sociais?

EE – Penso que no campo laboral e sindical há também divisões e clivagens antigas e novas. Naturalmente a força de trabalho é sempre o elo mais fraco na relação entre trabalho e o mundo empresarial, por isso, é que os trabalhadores devem ter condições para poderem negociar as suas condições de trabalho e os seus direitos. O movimento sindical teve um papel importante como actor no sistema que culminou com o modelo de Estado Providência, no entanto, o campo do trabalho mudou de uma forma drástica. Os direitos laborais adquiridos estão sobre uma grande pressão desde os anos 80 por força da globalização e competitividade económica e pela vontade dos empresários em flexibilizar as relações laborais.

CP – A economia precisa de crescer e de ser competitiva...

EE – Pois, e Portugal tem naturalmente de ser competitivo também. Do ponto de vista da economia isso é necessário para dinamizar a vida das empresas e organizações, mas a consequência disso em termos de força sindical tem-se traduzido num enfraquecimento crescente dos sindicatos a nível geral. No caso dos países europeus, e da Europa do Sul e de Portugal em concreto, esse enfraquecimento tem, a meu ver, vindo nos últimos anos a incidir de uma forma cada vez mais dramática em alguns sectores particulares da força de trabalho, que são justamente naqueles sectores que já eram mais vulneráveis do que os outros, que são os trabalhadores da indústria, os que têm contratos a prazo, os ilegais, os menos qualificados e que são precisamente aqueles que têm menos meios para poderem responder a esse tipo de desafios. A grande contradição, penso eu, em que as principais correntes sindicais se encontram é precisamente esta: têm uma certa força em sectores onde as relações de trabalho são mais ou menos estáveis (são sectores da classe média/alta sobretudo) ao mesmo tempo que se afastam, cada vez mais, desses sectores mais vulneráveis.

CP – Poderemos assistir ao fim do sindicalismo a breve prazo?

EE – Não quero crer que estejamos a assistir ao fim do sindicalismo. Penso que isso seria a ameaça geral para a própria coesão da sociedade, mas há um conjunto de pressões nacionais e internacionais que estão a exigir e a obrigar os sindicatos a repensar e a procurar alterar os modelos de acção e de intervenção em que se têm apoiado nas últimas décadas. Isso vai ter de acontecer julgo eu e espero que aconteça. Os sindicatos têm de lutar pelo direito dos trabalhadores, mas a meu ver deviam procurar outro tipo de alianças, práticas menos fixadas em pressupostos ideológicos, que eu acho que já não se adequam à realidade, no sentido de incorporar outros sectores, justamente esses sectores mais frágeis que referi, e para isso é preciso que os sindicatos tenham abertura para chamar a si a colaboração com outro tipo de redes, como associações solidaristas, que lutam pelo direito dos desempregados... Parece-me haver alguns indícios de que o nosso sindicalismo já percebeu que precisa de ser mais activo, em vez de ser apenas defensivo e estar no contra permanentemente. Os relatórios internacionais têm mostrado que os sectores e os países mais capazes de responder às exigências da competitividade económica são de um modo geral coincidentes com os sectores e países onde os sindicatos são mais fortes. Por isso, acho que os sindicatos têm um papel bastante importante a desempenhar na economia e na sociedade. Eles são de certo modo meios de articulação entre as necessidades da competitividade e inovação tecnológica e a defesa da coesão social. Sem haver estruturas de representação, as probabilidades de o conflito social estalar de uma forma descontrolada tornam-se maiores. Nenhum sistema quer isso e sobretudo nenhuma democracia pode aguentar-se com uma conflitualidade e instabilidade permanente.

CP – Qual é a sua opinião em relação às políticas de emprego divulgadas pelo Governo?

EE – Estamos numa fase em que o cenário internacional nos empurra e nos pressiona para todo um conjunto de reconversões que obviamente têm custos sociais, pelo que espero que as políticas sociais minimizem pelo menos essa situação. Por outro lado há reconversões profundas em alguns sectores tradicionais que têm de ocorrer. Acredito e espero que haja algum resultado positivo e que o Governo seja capaz de pôr em prática aquilo que prometeu quando ganhou as eleições com maioria absoluta, no sentido de daqui por três anos o cenário ter melhorado.

CP – Também prometeu não aumentar os impostos...

EE – Não podemos ser demasiado ingénuos, mas também não podemos ser excessivamente catastrofistas. A política é um jogo permanente e as concessões fazem parte da vida política, mas apesar de tudo dou o benefício da dúvida. Não tenho certezas, ninguém tem certezas quanto a resultados.

CP – Como é que está a ver quer o debate no âmbito das eleições presidenciais quer os candidatos?

EE – Estou a ver esta situação com alguma inquietação, mas ao mesmo tempo sem grande dramatismo. Tudo indica que Cavaco Silva (CS) irá vencer com uma grande vantagem, mas ainda está tudo em aberto. Acredito que o país para melhorar precisa de alterar a imagem da política e isso depende muito da própria atitude dos políticos. Nesse sentido, sou crítico, também por razões de opção política e ideológica, se quiser (não sou simpatizante politicamente de CS, embora lhe reconheça qualidades pessoais e técnicas), porque entendo que o perfil de CS não me parece ajustado à figura e à instituição da Presidência da República. Por algumas das razões que referi, pela crise, que se deve em larga medida ao poder do mercado da economia liberal que tem tido repercussões profundas (e estou preocupado com as repercussões negativas). Por isso, acho que o país ficaria melhor se tivesse na Presidência alguém com uma maior sensibilidade social.

CP – Como Mário Soares?

EE – Estou um bocado céptico e crítico relativamente às alternativas a CS. As que estão a surgir não são as melhores até do ponto de vista da esquerda democrática, da esquerda da área do PS que é onde me situo. Acho que Mário Soares apareceu para evitar que a vitória de CS seja um "passeio" e que o PS debateu-se com a falta de alternativas. Não conseguiu criar alternativas mais adequadas a uma candidatura forte que pudesse contrariar a de CS. Apesar da vantagem de Soares sobre Alegre (além de ter uma visibilidade pública maior conta com o apoio oficial do PS) apoio este último. A candidatura de Soares é uma espécie de "deja vu", e apesar de toda a consideração que tenho por ele, não me sinto confortável a ver o meu país a ter um Presidente com uma idade excessivamente avançada. Não se trata de uma questão cronológica, Soares está, de facto, em fim de ciclo. Já fez pela nossa democracia muitíssimo. Por outro lado, não gostei pessoalmente da forma como a sua candidatura surgiu e a forma como o PS actuou, pelo que acho que a candidatura de Alegre tem mais possibilidades de ser mais abrangente e mais ampla. É uma pessoa conhecida e respeitada, revela capacidade de pensar por ele próprio, é uma voz crítica, defensora da liberdade e justiça e acredito que se as pessoas não se deixarem levar pela onda de discurso salvador de CS (e apesar de Soares e Alegre serem do mesmo partido e isso aparentemente trazer dificuldades à esquerda e ao PS) talvez tenha mais condições para disputar a segunda volta [das presidenciais] do que Soares. É a minha convicção pessoal.

 
 
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Elísio Estanque