Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
09-02-2006        Sábado
1. As elites sociais portuguesas são constituídas por quem exactamente? Aristocratas? Milionários?
EE – Tradicionalmente considera-se que as elites são aqueles sectores da população que reúnem maiores volumes de riqueza, prestígio e poder. Mais modernamente a análise sociológica considera três critérios principais para aferir o status dos indivíduos: a actividade profissional; o nível educacional; e o rendimento/ propriedade. É claro que cada um destes recursos pode combinar-se de forma variada, o que, de resto, é em si mesmo um critério a ter em conta na análise da estratificação social. Ou seja, pode dizer-se que se alguém (algum grupo ou família, por exemplo) possui volumes muito elevados de todos aqueles recursos, se insere em princípio no topo da pirâmide social. Neste caso haveria uma coerência entre os diferentes indicadores de status. Se, pelo contrário, nos referimos a sectores que possuem, por exemplo, elevada riqueza económica mas fracos recursos culturais ou educacionais, pode dizer-se que se encontram numa situação de "inconsistência de status". Os chamados "novos ricos" são um exemplo típico dessa situação, mas pode ocorrer a situação inversa, como aconteceu, por exemplo, com alguns sectores da nobreza empobrecida e decadente, isto é, famílias que mantiveram os seus títulos nobiliárquicos mas com o avanço do capitalismo perderam progressivamente poder económico e influência política. Desde que estes assuntos se tornaram objecto de estudo pelas ciências sociais (séc. XIX) também se tornou comum distinguir diferentes tipos de elites: culturais, políticas, económicas, militares, religiosas, etc., sendo que, segundo as teorias das elites, tendo todas elas em comum um elevado prestígio, bem como a proximidade do poder e dos centros de decisão, tendem a proteger-se e a estabelecer laços entre si, frequentando os mesmos meios e criando, por assim dizer, grupos de status comuns. A elite social reunirá, portanto, os vários tipos de "capital" (citando o sociólogo francês Pierre Bourdieu), tais como meios económicos, recursos culturais e educacionais, mas também aquilo que podemos chamar de "capital social", ou seja, as redes de amigos e contactos pessoais e familiares que cada um possui.
Para responder mais directamente à sua pergunta, as elites portuguesas hoje certamente que integram membros ou herdeiros daquelas camadas (aristocracia e burguesia), mas a esses juntam-se os segmentos de topo dos sectores de actividade que acabei de referir. Uma vez mais, importa sublinhar que não chega possuir apenas um dado tipo de bem ou recurso para se pertencer à elite. Para alguns sectores sociais que preservaram a aura de prestígio de outras épocas – o nome da família, por exemplo – esse tipo de vínculo à aristocracia ou nobreza é importante, mas numa sociedade largamente comandada pelo princípio do mercado tais títulos só têm verdadeiro relevo e reconhecimento se ao mesmo preservarem ou reforçaram o seu património e a sua riqueza. Por outro lado, nas últimas décadas, desde os anos setenta do último século, em Portugal houve uma alteração das elites económicas, em que as poucas famílias ricas e poderosas de há trinta anos (os Mello, os Espírito Santo, os Champalimaud, etc.) foram ultrapassadas, pelo menos em protagonismo e influência, pelos novos empresários como Belmiro de Azevedo, Américo Amorim e poucos mais, que figuram hoje entre os mais ricos. No entanto, é preciso não esquecer que as elites "culturais", profissionais e políticas, até pela facilidade de aproximação ao poder económico, constituem segmentos de "classe alta" que também integram as elites actuais. Assim, os criadores culturais, os escritores e artistas; os gestores de topo e os cientistas de renome; os protagonistas que pontuam na comunicação social; ou os responsáveis institucionais e personalidades do campo político integram igualmente a elite e têm, portanto, acesso a penetrar nos espaços de exclusividade dos grupos privilegiados.

2. As elites sociais em Portugal são fechadas, ou seja, não gostam de se misturar com as outras classes socais, casam-se entre si?

EE – A vida social moderna leva os indivíduos a procurar a diferenciação, isto é, procura-se obter para si uma posição (estatuto) de privilégio, e quanto mais selectiva e difícil de alcançar for essa posição, tanto maior é o seu valor simbólico. Isto acontece sobretudo nas classes média e alta, porque as classes populares e os sectores excluídos tendem a defender-se mais no colectivo. Mas há hoje um factor decisivo que de certo modo contribui para abrir o relacionamento e a proximidade entre diferentes classes sociais: refiro-me ao capital educacional. O título académico que se consegue alcançar tornou-se um factor aparentemente nivelador porque permite que pessoas de diferentes origens sociais partilhem interesses intelectuais comuns, frequentem as mesmas universidades ou os mesmos programas de doutoramento e isso facilita a mobilidade social, nomeadamente através de casamentos interclassistas. O factor credenciais escolares e "títulos" académicos (diplomas) contribuiu para abrir as fronteiras de classe. Porém, elas não se abriram totalmente, desde logo, porque o próprio acesso aos títulos académicos mais elevados obedece também a uma lógica selectiva e, portanto, é condicionado pela classe de nascença (especialmente pelo volume de recursos económicos e educacionais dos próprios pais). Diria, portanto, que a tendência normal será para que as famílias das elites pressionem e criem condições para que os seus filhos se casem entre si, mas na vida moderna de hoje esse tipo de "controlo" tornou-se menos eficaz. Todavia, o próprio facto de as elites se socializarem e conviverem entre si, em espaços restritos e exclusivos, facilita essa reprodução e esse fechamento. E a sociologia já mostrou que quanto mais nos aproximamos do topo mais difícil se torna aceder ao escalão seguinte, isto é, o crivo da selectividade vai-se apertando à medida que subimos cada degrau da hierarquia da estratificação.

3. Há códigos de comportamento próprios destas elites? Quais, por exemplo?

EE – Diz-se que a verdadeira elite é discreta por natureza. Mas há que ter em conta a heterogeneidade das elites das sociedades contemporâneas. Além disso, há também um elemento de subjectividade a considerar, ou seja, por exemplo, as elites culturais podem desenvolver representações negativas e de demarcação relativamente a outros sectores da elite, como os políticos ou os empresários. Por vezes, desenvolvem-se comportamentos e estilos de vida concorrenciais entre diferentes segmentos da elite. Consoante os tipos de "capital" que predominam em cada camada ou fracção, assim as posturas, os hábitos e o sentido estético podem ser mais "sóbrios" ou "ostentatórios", e privilegiar a prática de actividades lúdicas e ocupações de lazer de forma diferenciada entre cada uma dessas fracções. Digamos que há uma luta simbólica pela demarcação e usurpação de espaços, estilos, consumos, práticas e "etiquetas" que funcionam como códigos de diferenciação ou de "distinção", quer entre diferentes sectores da elite quer sobretudo entre as elites e os estratos abaixo, em particular as chamadas classes médias. Assim, as estruturas do "gosto" pautam-se por uma construção simbólica de formas de estar, de vestir, maneiras de andar, de comer, de falar, etc., que emitem sinais pretensamente "distintivos" e que se destinam a ser descodificados apenas pelos que partilham o mesmo "ethos" e se inserem no mesmo "grupo de status".

4. Hoje em dia há muita imprensa cor de rosa mas costuma dizer-se que as verdadeiras elites, ou o chamado jet set português não gosta de aparecer nem aparece nessas revistas. É verdade? Por que é que o fazem? Não querem aparecer ao lado de quem não consideram?

EE – A imprensa cor-de-rosa funciona sob o princípio do negócio e da ostentação e, portanto, as elites mais "nobres" ou as de traço "aristocrático", que pautam a sua forma de estar pela descrição e sobriedade – para muitos, as verdadeiras elites – normalmente rejeitam e demarcam-se desses sectores. O chamado "jet set" é bastante marcado por uma certa vontade de protagonismo. De certo modo é um produto da própria mediatização da sociedade e pode até considerar-se uma outra forma de "novo riquismo". Ora, as elites verdadeiramente distintas tendem a recusar tais misturas e preferem ficar na sombra do seu charme discreto. Trata-se afinal de uma postura própria de quem nos diz, ou diz a si mesma, que não precisa de mostrar o que é. Limita-se a ser quem é.

5. A sociedade portuguesa é muito estratificada?

EE – Segundo estudos recentes do Eurostat e do PNUD (Nações Unidas), Portugal é dos países europeus onde a desigualdade social é maior. Além disso, a diferença entre a camada mais rica e a mais pobre, ou melhor, a desigualdade de rendimentos entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres tem vindo a aumentar desde 2000: em 1995 a diferença era de 7,4 vezes mais rendimento para os ricos, em 2000 baixou para um diferencial de 6,4 vezes e em 2003 voltou a agravar-se para 7,4 vezes. Na distribuição do rendimento (medida pelo índice de Gini, ver relatório PNUD, 2005) entre os mais ricos e os mais pobres Portugal apresenta valores muito elevados, próximos da Tanzânia e de Moçambique! Isto quanto à riqueza económica. Em termos mais gerais a "distância social", isto é, a disparidade das oportunidades e do acesso a recursos entre os mais privilegiados e os mais excluídos, tem vindo a aumentar. Temos cerca de 20% da população a viver no limiar da pobreza (com menos de metade do salário médio) e têm aumentado as bolsas de pobreza e o endividamento das famílias, bem como a precariedade no emprego, inclusive nas classes médias. A globalização tem vindo a criar novas "subclasses" proletarizadas, lado a lado com os novos sectores privilegiados, que beneficiam das vantagens económicas, tecnológicas e lúdicas que a sociedade da informação lhes disponibiliza. Por outro lado, devemos também lembrar que, apesar de tudo, comparativamente com a situação de subdesenvolvimento que vivíamos há três ou quatro décadas atrás, os níveis de escassez e de pobreza dos estratos mais baixos melhoraram substancialmente.

6. Em comparação com outros países a nossa organização social é mais rígida?

EE – Sim, é verdade que as estruturas organizacionais são ainda muito rígidas e persiste um significativo fechamento de classe na nossa sociedade. O princípio da "meritocracia" que as sociedades ocidentais mais desenvolvidas tanto invocam, ainda não funciona ou funciona escassamente entre nós. Em vez disso, funciona a chamada "cunha" e uma mentalidade algo anacrónica, marcada por traços de servilismo e pelo medo do poder. Esse é, aliás, um aspecto que muito se deve ao peso da igreja católica em Portugal ao longo da história. As relações "clientelares" e o compadrio que prevalece em muitos sectores socioprofissionais e institucionais (inclusive no seio das empresas e dos partidos políticos), são ilustrativos de uma certa forma de paternalismo e dependência face aos poderosos que contribuem para manter o atraso do país. Daí deriva também a falta de autonomia e de sentido de risco dos portugueses. Por isso os nossos níveis de desenvolvimento e de competitividade são tão incipientes em comparação com os países europeus mais avançados. É pois fundamental que as medidas e políticas a pôr em prática tenham em conta, por um lado, a necessidade de reduzir as desigualdades, de incluir os excluídos e proteger os mais pobres, e, por outro lado, dar oportunidades iguais a todos no acesso a recursos, conhecimentos e competências, criando mecanismos de recompensa que premeiem sobretudo o mérito e o esforço de cada um.

7. Em linhas gerais como é que foi a evolução da pirâmide social ao longo da história?

EE – Direi que desde o século XVIII – em que as velhas elites nobres, aristocráticas e eclesiásticas monopolizavam todos os privilégios – se tem assistido, sobretudo nas sociedades ocidentais, a uma evolução no sentido em que, em vez dos muito poucos no topo e a esmagadora maioria do povo na base, foram a pouco e pouco crescendo as camadas intermédias. Primeiro, a classe média proprietária, como a pequena burguesia comercial, depois com a industrialização e, mais recentemente, a terciarização das sociedades, cresceu a burguesia, a classe trabalhadora e as novas classes médias assalariadas, fazendo com que os sectores intermédias da pirâmide social aumentem. No entanto, o topo da pirâmide também vai subindo, mantendo distâncias que por vezes são imperceptíveis. Hoje, perante a crescente globalização da economia e das trocas a todos os níveis, quer as elites, quer as classes baixas são cada vez mais estruturadas por esses fluxos de mobilidade transnacional. De um lado, vem-se criando uma nova "classe transnacional", que circula no mundo beneficiando dos meios tecnológicos e económicos que controla; de outro lado, expandem-se as chamadas "subclasses", por vezes remetidas para a clandestinidade, alimentando lucros fabulosos e negócios ilegais, de que é exemplo dramático o tráfico de migrantes ou de crianças, e a quem são negados os mais elementares direitos humanos. Em suma, há uma crescente bipolarização entre os dois extremos da pirâmide social. Mas, ao mesmo tempo, entre as diferentes camadas e estratos sociais intermédios, a mobilidade social – ascendente e descendente – tende a aumentar. O sistema de estratificação vem revelando maiores concentrações nas camadas média e média-baixa, sectores cada vez mais segmentados, enquanto, a classe trabalhadora também se fragmenta e luta para se manter "incluída". Luta essa que é cada vez mais difícil, visto que o emprego temporário e o vínculo precário ao mercado de trabalho têm vindo a aumentar muito rapidamente, em especial entre a força de trabalho não-qualificada e com menores recursos escolares.

* Entrevista pela jornalista Rita Gonçalves - 9 de Fevereiro de 2006 - a aguardar publicação

 
 
pessoas
Elísio Estanque