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03-06-2006        Diário de Coimbra
Há uma grande confusão na cabeça de alguns dos nossos políticos profissionais, designadamente nas estruturas do PS de Coimbra. Confundem a vontade de debater ideias com atitudes de desrespeito para com o povo e para com os eleitos, e acusam os que ousam exprimir publicamente as suas ideias de "vaidade pessoal" e de "elitismo".
Toda a gente sabe o preço que a Europa do século XX pagou quando os cidadãos se deixaram arrastar pela demagogia anti-elites conduzida por diversos movimentos e doutrinas populistas e integristas, que se arrogavam ter o exclusivo de falar em nome do povo. Mas, pelos vistos, há ainda responsáveis ou pseudo-dirigentes que ignoram isso. Nas suas mentes brilhantes a democracia deveria limitar-se ao exercício do voto e ao direito das bases plebiscitar as suas propostas apresentadas ciclicamente nos actos eleitorais (seja no plano partidário seja na vida democrática em geral). É este excesso de formalismo que está a perverter a eficácia e o funcionamento orgânico dos aparelhos partidários.
Convém começar por distinguir entre "aparelho" e "aparelhismo". As estruturas organizativas e os regulamentos burocráticos são necessários, desde que não se tornem factores de bloqueio e de entropia do sistema. O "aparelhismo" é, por isso, o conjunto de factores, de forças, de jogos de poder, de redes de cumplicidades e de interesses que corrói as instituições à medida que elas crescem. Funciona segundo os princípios perversos da burocracia, tendendo a "esquecer" os objectivos estratégicos e desperdiçando as energias num conjunto de acções e comportamentos ritualistas que – objectivamente – têm como função manter o poder dos dirigentes e das oligarquias instaladas (leia-se Robert Michels, Para uma Sociologia dos Partidos Políticos). Ainda que por vezes os dirigentes afirmem – em abstracto – o respeito pelas minorias e os "derrotados", sempre que essas minorias passam à acção e criticam a referida lógica aparelhística, logo saltam a terreiro na defesa do "magnífico" funcionamento das máquinas partidárias que eles próprios dirigem.
Os cidadãos independentes ou filiados no partido não têm o direito de contestar a acção dos dirigentes, visto que estes são os legítimos representantes das bases. Segundo tais raciocínios as oposições não teriam direito de existir, sobretudo quando a sua voz se tornasse incómoda para a maioria. Importa recordar que, no actual contexto político, a democracia participativa tem de ser vista como um complemento e não como um factor de concorrência da democracia representativa. Só com a ajuda da primeira é que a última poderá ser consolidada. Isto é um facto óbvio, mas muitos políticos teimam em não querer percebê-lo nem aceitá-lo. O exemplo da candidatura de Manuel Alegre, que espelhou o pulsar crítico das bases e o potencial de acção cidadã face à esclerose burocrática instalada nos grandes partidos, pelos vistos, ainda não foi suficiente para que daí se retirassem as devidas ilações. Em vez de servir de lição aos que se julgavam donos dos votos e da vontade dos militantes, essa parece ter sido, para alguns, uma experiência traumática que só acicata o seu irracional desejo de vingança.
Qualquer democrata percebe que os partidos de esquerda só teriam a ganhar se soubessem ouvir as vozes críticas dos cidadãos e dos seus militantes. Qualquer pessoa de bom senso entende que os partidos só podem revitalizar-se e renovar-se se souberem estimular a discussão de ideias. Mas a mentalidade vigente em muitos quadros partidários – seja ela inspirada em Maquiavel ou de matriz soviética – tende a ver uma conspiração e a estremecer sempre que alguma coisa mexe para além do seu controle. Compreende-se. Em muitos casos trata-se de pessoas que desde há 30 anos têm responsabilidades organizativas, esgotam-se no tarefismo e no networking do dia-a-dia e, por isso, não têm tempo para a reflexão e para o pensamento crítico. Desenvolveram um estilo formatado pelos cargos de responsabilidade que ocuparam ao longo do tempo e pela reverência das bases de quem se julgam eternos tutores e protectores. Agarrados que estão à sua pequenina migalha de poder e de tão enleados nas teias de influência e de interesses que eles próprios tecem, nem sequer percebem que a sua senda persecutória em relação às supostas "elites" só põe a nú o seu absoluto vazio de ideias.
Para concluir: uma coisa são as elites, outra bem diferente é a mentalidade elitista. Obviamente que os dirigentes capazes e dinâmicos – com competência técnica, fiéis aos valores do partido e com conhecimentos e capacidade de liderança – não têm que nascer no seio da elite, mas devem ter oportunidade de poder integrá-la. Do que o nosso país mais carece, aliás, é de novas lideranças locais e de processos expeditos de renovação das elites. E é através desse processo de renovação permanente que a democracia se reforça, sobretudo se o mesmo for transparente e participado por todos (ou pelo maior número possível). Mas isso exigiria que os partidos democráticos soubessem reconhecer os seus vícios, bem como recompensar o mérito e a capacidade profissional e política dos seus militantes de base. Seria preciso que o princípio da meritocracia fosse aplicado. O que por sua vez obrigaria a varrer dos partidos essa mentalidade que ainda vê o país como se de um sistema de castas se tratasse, e o partido como se fosse um regimento militar. Pode parecer paradoxal mas uma tal mentalidade, que tanto invoca o nome do povo, revela-se afinal uma perversa combinação entre o elitismo mais conservador e o populismo mais demagógico.
Adenda: Num artigo recente publicado no Diário as Beiras, um dirigente local do PS resolveu acusar-me de pertencer às "pretensas elites" que se consideram "acima dos próprios portugueses", e ao mesmo tempo – pasme-se (!) – atacar-me por ser "alguém que ao assentar praça num passado recente, talvez gostasse de ser considerado general". Ora, tais palavras dizem tudo acerca de quem as escreveu. Sem comentários.

 
 
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Elísio Estanque