Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
07-09-2006        Campeão das Províncias
Paula Alexandra Almeida

Está em fase de conclusão o projecto "Culturas Juvenis e Participação Cívica: diferença, indiferença e novos desafios democráticos", liderado por Elísio Estanque e Rui Bebiano, investigadores do CES. O resultado final deverá deve ser apresentado este mês, mas o sociólogo revelou ao "Campeão" algumas das conclusões a que chegou após o inquérito realizado aos estudantes da Universidade de Coimbra.

Campeão da Províncias (CP) - Porquê estudar a população estudantil de Coimbra?

Elísio Estanque (EE) – Desde logo pela própria Universidade de Coimbra (UC), a sua tradição, a sua história, aquilo que ela representa na história do próprio país ao longo de séculos. E interessa-nos estudar Coimbra por essa aura que existe da UC, mas também porque somos investigadores da UC e temos vindo a ser solicitados para trabalhar em torno de aspectos ligados à instituição. Em 1999, a partir do Centro de Estudos Sociais (CES) fizemos um primeiro inquérito aos estudantes feito a pedido da Reitoria, no intuito de fazer a caracterização da actual geração de estudantes da Universidade e perceber alguns dos novos problemas e desafios que se deparam à instituição. Como cidadãos interessados também queremos perceber a nossa própria realidade e estudar Coimbra continua a ser um tema interessante. Há muitas formas de olhar a realidade da UC nas suas múltiplas e complexas dimensões. Mas as conclusões que nós queremos tirar deste tipo de estudos não se circunscrevem a um interesse local. Podem servir de exemplo e sem dúvida que nos ajudam a perceber o Ensino Superior (ES) em Portugal no seu conjunto.

CP - A origem dos estudantes não é a mesma que há algumas décadas. Que influência é que isso tem tido no dia a dia da instituição?

EE – As coisas mudaram na medida em que o sistema de ensino em Portugal também mudou muito, progressivamente, desde os anos 70 até agora, com sinais mais evidentes a partir da década de 80 quando começou a existir uma oferta muito plural e muito espalhada pelas diferentes regiões do continente. Isso fez com que os estudantes que procuravam o ES se fossem dispersando pelas suas regiões de origem. Isto não é um problema específico de Coimbra mas sim um problema que resulta do próprio sistema. Resulta por um lado da expansão e democratização do sistema educativo e por isso o peso centralizador que ocuparam no passado recente universidades como as de Coimbra, Lisboa e Porto deixou de ser tão evidente. Isso traz alterações na medida em que a instituição deixa de ter o impacto, a abrangência, a influência e o peso que teve no passado. A questão é que a UC tem a particularidade de, por causa do longo passado, Coimbra universidade e Coimbra cidade serem coisas que se misturam e confundem. E de alguma maneira esse imaginário virado para essa tradição histórica continuou até há muito pouco tempo a fazer com que muitas das estruturas, e até os próprios docentes, continuassem a pensar a cidade e a população estudantil como se Coimbra tivesse ainda a mesma centralidade e o mesmo protagonismo.
A própria estratificação social da população estudantil mudou bastante. Mudou radicalmente. E não é só por uma questão espacial e de proximidade. É porque tanto o espaço como a geografia têm envolventes sociais. Em 2000 cerca de 25% dos estudantes eram oriundos só do concelho de Coimbra, mais de 15% provinha dos restantes concelhos do distrito e cerca de 30% era oriundo dos restantes concelhos da região Centro. A isto está associado também o facto de a maioria dos estudantes agora ter uma origem social mais baixa, da classe trabalhadora.

CP – Isso influencia também o sucesso escolar e as possibilidades dos jovens ingressarem na universidade e em determinados cursos em detrimento de outros?

EE – Influencia as opções, influencia as expectativas dos estudantes, influencia a forma como eles lidam com a Universidade, com os professores, com os colegas e com a própria cidade. As formas de sociabilidade na relação entre o estudante e a cidade, e os seus espaços, e as suas actividades e formas de ocupação do tempo livre, por exemplo, alteraram-se radicalmente. E depois o facto de haver um grande número de estudantes cujas famílias residem na região Centro, associado a uma rede de transportes mais densa e mais moderna e ao facto de haver mais carros e um maior acesso à mobilidade, facilita e estimula um contacto muito mais regular e muito mais assíduo do estudante com as suas origens geográficas. Por outro lado há um peso crescente dos estudantes cujas famílias são da própria cidade e do próprio concelho. Esses nunca tiveram a mesma relação com a Universidade e com a cidade que tinham outrora os que vinham de todas as regiões do país. Portanto, as atmosferas do ambiente estudantil na sua relação com a cidade têm vindo a alterar-se dramaticamente. Agora, à sexta-feira, vê-se os estudantes com as malas a irem para casa. Antigamente ficavam cá quase o ano todo. Iam a casa no Natal ou na Páscoa e pouco mais. E isso faz toda a diferença.
Depois, deu-se outro tipo de alterações no plano pedagógico e de aprendizagem. Também o tipo de pressão que existe para que o estudante faça o seu curso rapidamente e imediatamente siga para a profissão esperada e necessária passou a ser muito maior. Porque a família de classe trabalhadora que investe para ter um ou dois filhos a estudar na Universidade e que tem que pagar uma série de custos, faz imensos sacrifícios para isso. Se faz sacrifícios obviamente que exerce uma pressão maior e exigências sobre os seus filhos e isso é legítimo.

CP - Analisou também os factores que influenciam a escolha dos cursos. A que conclusões chegou?

EE – No anterior inquérito houve uma maioria de estudantes que indicou como razão de escolha principal do curso a vocação. Os sociólogos, à partida, não explicam as coisas por este prisma. Com esta resposta eles querem dizer, quando já estão a frequentar o curso x ou y, que acham que já no secundário se sentiram orientados ou motivados para essa área. Nós achamos que há aqui um certo impulso para a autojustificação, sendo também uma forma de se mostrar coerência, de se mostrar que se sabia o que se queria. Havia também um número significativo que afirmava ter escolhido o curso de acordo com necessidades de afirmação pessoal e para encontrar uma profissão que fosse minimamente satisfatória.

CP – Satisfatória no sentido de rentável?

EE – Havia dois aspectos. O primeiro uma profissão que desse acesso a um sentido de realização pessoal, outro uma profissão que fosse prestigiada e bem remunerada. Nesta caso, a primeira teve um volume de respostas mais significativo do que a segunda. Uma outra razão apontada foi a necessidade de obter instrumentos e competências que lhes permitissem conhecer melhor a sociedade e o mundo envolvente. Mas de facto, a questão da vocação aparecia em primeira escolha com mais de 60%.

CP – Nesse ponto existe um pormenor interessante que se prende com o facto de a ambição de alcançar uma profissão que permita a realização pessoal aparecer sempre mais vincada nas mulheres. Porquê?

EE – Tem a ver certamente com pressões e influências da cultura e da mentalidade vigente na sociedade mais vasta. Mas nestes inquéritos sempre se notou que as mulheres são em geral mais ponderadas nas respostas que dão e mais planificadas. Por exemplo, em indicadores como a regularidade do estudo, quantas horas por semana passam a estudar, as raparias mostram uma dedicação maior. Em relação a hábitos de leitura fora do âmbito escolar, as raparigas revelam ler mais, nas visitas a museus e outras actividades culturais as raparigas mostram muito mais assiduidade nesse tipo de ocupações. Os rapazes lideram, de modo geral, quando se trata de tecnologias e informática e mostram maior motivação para a participação associativa cívica e política. Isto espelha bastante bem aquilo que é a realidade do associativismo estudantil em Coimbra. Temos uma maioria de mais de 60% de raparigas, mas nas estruturas estão rapazes, ao nível das faculdades e da própria Direcção-Geral da AAC.
Há efectivamente uma diferenciação ao nível dos papéis culturais e sociais que são incorporados de forma diferente por rapazes e raparigas. Sem querer dizer aqui um lugar comum, os rapazes são mais interventivos, são mais exibicionistas, arriscam mais. A mulher é mais ponderada. Eles são mais impulsivos e muitas vezes falam do que não sabem, enquanto a mulher pensa duas vezes e quando fala fá-lo quase sempre de coisas que tem mais sustentadas. Isso nota-se na convivialidade e no quotidiano.

CP - Há uma outra conclusão interessante que estratifica a importância que os estudantes atribuem à família, à vida afectiva e à profissão. Quer revelar alguns dados?

EE – Essas eram indicações interessantes em que curiosamente a família aparecia como uma referência das mais importantes, senão mesmo a mais importante. A dimensão da vida a que os estudantes afirmaram atribuir maior importância. Mas há aqui aspectos um pouco ambíguos e, por vezes, até contraditórios. Por exemplo, numa primeira escolha temos família, vida afectiva, profissão e sexo. Por esta ordem. Mas tínhamos uma primeira, segunda e terceira escolha. E na segunda escolha temos vida afectiva em primeiro, profissão em segundo, família em terceiro e lazer em quarto lugar. Portanto, fazendo a combinação destas várias prioridades, os campos que sobressaíram eram a família, a vida afectiva e a profissão, por esta ordem, como as mais importantes em termos das opções gerais dos inquiridos. De certa maneira, apesar de tudo, a família continua a ser um referente muito importante e isso, no meu entender, também tem a ver com a diferença sexual. A rapariga, em princípio, tem uma ligação afectiva mais forte com a família e tem um vínculo mais próximo com o núcleo familiar. Isso tem que ver com processos ancestrais e culturais, tem que ver com mentalidades e diferença de papéis. A mulher sempre foi tradicionalmente mais preparada no âmbito do espaço doméstico enquanto ao rapaz sempre foi dada liberdade muito mais cedo. Com aceitação por parte da sociedade e logo por parte da família.
Isto ajuda a explicar aquela outra questão de necessidade de um contacto regular e permanente com o núcleo familiar, na qual pesa também o aspecto económico, como é óbvio. Sendo família com menos posses, vivendo relativamente mais perto, muitas vezes famílias com recursos rurais, isso ajuda, porque na maioria dos casos não há dinheiro para se ficar aqui um fim de semana a ir à discoteca ou para o divertimento apenas a esbanjar dinheiro. Há portanto a necessidade de regresso ao núcleo familiar e eu penso que as raparigas sentem isso de uma forma mais responsável. São mais cautelosas e mais ponderadas a esse nível. Por isso a esse nível, haver uma maioria de raparigas na UC, faz toda a diferença.

CP - Em relação à praxe, um assunto que levantou alguma polémica há uns meses aquando da divulgação dos primeiros resultados, qual é a posição dos estudantes?

EE – De facto, realmente, relativamente às perguntas sobre a praxe houve alguma polémica mas que não foi culpa de ninguém. Os primeiros dados é que estavam apresentados de forma um pouco confusa que não coincidia bem com a forma como a pergunta tinha sido feita.
Dentro deste tema nós tínhamos um quadro de questões e pedíamos para assinalar as respostas mais importantes. E o que se pode concluir é que cerca de 67% dos inquiridos responderam que "a praxe deve repudiar qualquer forma de violência física ou simbólica".

CP – Isso significa, então, que os estudantes não estão satisfeitos com a forma como a praxe é praticada?

EE – Significa que há uma consciencialização, que nos parece ser crescente, por parte dos estudantes de Coimbra de que há qualquer coisa a alterar relativamente aos rituais da praxe académica. Não estou a dizer que seja maioritária mas parece-me haver uma percepção nesse sentido. Quando 67% das pessoas respondem que "a praxe deve repudiar qualquer forma de violência física ou simbólica" eu penso que têm presente que existem contornos na praxe actual que encerram esse tipo de elementos. E parecem mostrar aqui que são renitentes relativamente a isso. Depois, 51% dos inquiridos dizem que "a praxe deve ser revista de forma a receber melhor os novos alunos". Também aqui me parece haver uma percepção de que há uma necessidade de que os mais velhos ponham em prática, na recepção aos mais novos, aspectos mais informativos e pedagógicos que os ajudem a integrar-se.

Destaques

Em 2000 cerca de 25% dos estudantes eram oriundos só do concelho de Coimbra, mais de 15% provinham dos restantes concelhos do distrito e cerca de 30% eram oriundos dos restantes concelhos da região Centro

De certa maneira, apesar de tudo, a família continua a ser um referente muito importante para os estudantes

Parece-me haver uma percepção de que há uma necessidade de que os mais velhos ponham em prática, na recepção aos mais novos, aspectos mais informativos e pedagógicos que os ajudem a integrar-se

Perfil

Natural de Rio de Moinhos, concelho de Aljustrel, distrito de Beja, Elísio Guerreiro Estanque tirou a licenciatura em Sociologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa, e o doutoramento também em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, na especialidade de "Sociologia das desigualdades sociais e da reprodução social".
É docente da FEUC e investigador do Centro de Estudos Sociais onde desenvolve actualmente dois projectos: "Culturas Juvenis e Participação Cívica: diferença, indiferença e novos desafios democráticos", em conjunto com Rui Bebiano, e "Sindicalismo, Diálogo Social e Relações Laborais: para um aprofundamento da democracia no trabalho", ambos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

E ainda

Os estudantes não são iguais, são estratificados. E não são iguais não apenas em termos de dinheiro mas em termos de um conjunto de meios e recursos diferenciados: a propriedade, o prestígio, o capital cultural, o capital económico, o capital educacional ou o capital social. São tudo recursos que as famílias possuem. E se umas possuem num grande volume, outras não possuem de todo. A combinação destes vários elementos no seio da família têm uma influência muito grande na forma como as crianças, desde cedo, incorporam um certo status.

A grande maioria da massa estudantil consegue aceder ao Ensino Superior mas os filhos da classe trabalhadora ficarão, certamente, pela licenciatura. Hoje em dia, aqueles que prosseguem estudos até ao doutoramento são muito mais oriundos da elite.

O estatuto de jovem com status de estudante universitário já é em si mesmo um certo estatuto de classe e não são os próprios jovens que se vão auto-distinguir uns dos outros. Mas de facto há diferenças. Uma coisa é o estudante que vem porque o pai já foi estudante cá, e até viveu na República x, e foi estudante da faculdade tal, e faz tudo para que o filho venha para cá estudar, e tem um certo capital de referências relativamente à Universidade e à cidade. Outra coisa é o filho do pequeno agricultor ou da família de uma vila pequena do interior e que faz um esforço enorme para pôr o filho a estudar. A atitude é diferente porque a necessidade também é diferente.

Nós notamos nas aulas que aqueles que têm uma mais visível marca de ruralidade têm uma atitude diferente na aprendizagem, no contacto com os livros, no contacto com a leitura. E nota-se aqueles que têm claramente uma origem mais elitista. Isto não quer dizer que eles entre si se dividam, mas as diferenças estão lá. É por isso que a classe continua a ser um aspecto importante. Há opções de vida que aparentemente são escolhas, mas que são sempre condicionadas sob múltiplas influências.

Os estudantes estão preocupados com aquilo a que eles chamam a questão prática e de utilidade do curso, da sua formação, da sua aprendizagem e das suas competências. Porque no fundo eles estão é preocupados em ter um emprego. E por isso exigem que a Universidade crie mais estágios curriculares. É uma das coisas que assinalam sempre nos inquéritos como muito importante. São sempre as aulas práticas que são consideradas a vertente mais importante dos cursos. Esta atitude de instrumentalização dos saberes e do conhecimento está muito presente na geração actual.

Houve alterações muito profundas, a Universidade massificou-se, os cursos têm muito mais gente, o contacto com o professor é muito mais complicado, há insucesso e o estudante está preocupado com isso. E como perante a família, mesmo que seja ele o culpado, não quer assumir o insucesso, como há tanto chumbo e tanto abandono é porque os professores são maus. E pode ser até que tenha alguma razão, mas também se caiu numa certa onda de facilitismo. E eu falo por experiência própria.


http://www.campeaoprovincias.com/noticias.asp?id=5526


 
 
pessoas
Elísio Estanque