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12-09-2017        Público

Não são Goethe e Schiller, mas sim a Agenda 2010, um conjunto de reformas laborais e do Estado-providência levadas a cabo no início do milénio, que é central para se entender a Alemanha — e a Europa de hoje. Por isso, é lamentável que intelectuais, economistas e os media em geral pouco relatem sobre elas, apesar da lógica economicista dominante e do relevo que "reformas estruturais" assumiram no discurso atual. É importante olhar para a Alemanha sob uma perspetiva económico-social e evitar posições culturalistas, promovedoras de ressentimentos intra-europeus.

Não há dúvidas que o papel de mestre da Alemanha que dá lições a terceiros, que Wilhelm Busch caricaturou na figura do mestre Lämpel, se acentuou na última década. Em Portugal, a lembrança das lições alemãs ainda está bem presente. As "ajudas" de Bruxelas pressupunham "reformas estruturais", apresentadas aos países como trabalhos de casa. O seu cumprimento fez valer a Portugal o apelido de o melhor aluno da troika.

A propensão didática alemã não se tem ficado por países semiperiféricos como Portugal, mas também se faz sentir em relação a países cujo peso político a Alemanha já sentiu no passado, tais como os EUA e a França. É verdade que a política de Trump é alarmante; porém, é na Alemanha que a crítica ao Presidente tem sido das mais duras e obsessivas. Mas é em relação a Macron que a atitude de mestre tem sido particularmente acentuada. Berlim apostou em Macron para travar Le Pen, porém não sem um certo paternalismo que não teria sido possível durante a época de Helmut Kohl. Deixou claro que havia condições para a locomotiva franco-germânica, nomeadamente o início de reformas semelhantes às alemãs.

Em que se baseia a nova autoconfiança germânica, que Stephan Götz-Richter apelidou de arrogância, e que está a minar a boa reputação que o país foi construindo no pós-guerra? Se é sabido que ela tem como suporte a economia, menos conhecido é que a explicação dominante para o seu sucesso são um conjunto de reformas com o nome tecnocrata de Agenda 2010. Elas marcam o impulsionamento do neoliberalismo económico e o enfraquecimento do Estado social na Alemanha, algo que Merkel, tal como Thatcher a seu tempo, afirma não haver alternativa na época da globalização.

Porém, não foi a Merkel dos cristãos-democratas (CDU) nem os liberais (FDP) que introduziram essas reformas, mas sim a ala esquerda, nomeadamente o governo de Gerhard Schröder (1998-2005) com os parceiros de coligação, os Verdes. Foi o social-democrata Schröder que anunciou, em 2003: "Vamos ter que reduzir os benefícios do Estado, incentivar a auto-responsabilidade e exigir maior empenho de cada um." A Agenda 2010 reduziu os elevados custos não salariais do trabalho para empregadores, liberalizou o mercado laboral, criou modalidades de emprego temporário e de subcontratação. Fusionou o subsídio de desemprego com assistência social, elevou a idade da reforma para 67 anos, privatizou em parte as reformas e introduziu contribuições mais elevadas para o sistema de saúde.

Com estas medidas, Schröder pretendeu dar resposta aos problemas resultantes da reunificação e à estratégia de Lisboa de 2000, cujo objetivo era fazer da Europa o espaço económico mais competitivo e mais inovador do mundo e, assim, garantir crescimento sustentado, emprego e justiça social. Volvidos 14 anos, e face ao anúncio de reformas semelhantes em França, é pois pertinente questionar se as reformas atingiram os objectivos pretendidos.

A Agenda 2010 aumentou de facto a competitividade alemã. Numa década, o "homem doente" tornou-se no "campeão de exportações" da Europa. Porém, este desenvolvimento não conseguiu tornar a Alemanha e a UE mais justa sob o ponto de vista social. Antes pelo contrário: está a ter custos elevados que podem pôr em risco a coesão social, a democracia e até o futuro da Europa.

É verdade que elas trouxeram prosperidade à indústria de exportação. Mas essa riqueza não se tem revertido a favor de salários dignos, investimento, fomento da procura interna e redução de encargos, ao contrário do que aconteceu aquando do milagre económico nos anos 50 do século XX. Houve, de facto, diminuição de desemprego, mas a custo do aumento do trabalho precário. Já em 2005, Schröder afirmou que tinha criado o melhor sector pouco remunerado na Europa. Hoje, 23% dos alemães trabalha nele — no espaço europeu são "apenas" 15,9%, em França 8,8%.

Denota-se uma crescente clivagem entre aqueles que têm contrato de trabalho seguro e podem planear o futuro e os que se têm de sujeitar a situações voláteis. Para o jornalista Alexander Hagelüken, a Agenda 2010 é a principal causa do enfraquecimento da classe média. O sociólogo Klaus Dörre fala mesmo do regresso da sociedade de classes. Tal traduz-se em números: 10% da população detém mais de 60% da riqueza. O Ministério da Economia acaba de anunciar que 40% dos salários mais baixos na Alemanha são inferiores aos de 1995. Atendendo a que tal desenvolvimento afeta tendencialmente a população mais jovem, feminina (pressionada a trabalhar em part-time ou a cingir-se a setores menos remunerados devido à educação dos filhos) e crianças (a taxa de pobreza infantil é 19%), elas fragilizam o futuro de um país que se vê à cabeça da Europa.

Também pouco se discute as consequências dessas medidas para a Europa. No entanto, algumas vozes se levantam de que a Alemanha, através da contenção salarial, aumentou a sua competitividade também à custa dos parceiros europeus. Que a política de "beggar thy neighbour" é contrária ao projeto europeu e deixaria de produzir efeito se os restantes países também optassem por este caminho. Tal põe também a descoberto algo significativo, nomeadamente que os trabalhos de casa já foram ditados ao próprio país. Que a divisão atual na Europa não é tanto entre países e culturas do Norte e do Sul como políticos e os media querem fazer crer, mas sim entre interesses económicos e elites do Norte e do Sul e a restante população.

Há ainda a mencionar os custos sociais e humanos das reformas — que o sociólogo Wilhelm Heitmeyer apelida de "embrutecimento da classe média": stress, espírito de competitividade, falta de solidariedade e agressividade. O seu efeito é especialmente corrosivo na Alemanha, onde as disparidades sociais não são encaradas como algo natural e o Estado não é tradicionalmente visto com a desconfiança portuguesa, mas sim como o "Estado-pai" que deve olhar pelos seus filhos.

Apesar disso, tudo indica que Merkel ganhará novamente as eleições. O que pode parecer contraditório não o é atendendo a que o SPD, o maior partido da oposição, esbateu o seu perfil durante quatro anos de coligação com a chanceler. Além disso, foi o SPD que iniciou o desmantelamento do Estado social — mais concretamente, um pequeno círculo de homens em torno de Schröder que nasceram durante a Segunda Guerra Mundial, que cresceram durante a era de Adenauer e que desfrutaram das oportunidades de ascenção social proporcionadas pelos anos 60 e 70. Daí que a análise do sociólogo Didier Eribon — a de que a ascensão dos partidos de direita em França também se deve ao esquecimento a que a esquerda votou os mais desfavorecidos — também se aplique à Alemanha.

Não são, pois, as visões de Merkel que inspiram o eleitorado alemão mas o sentimento de insegurança que o fazem ver na "Mutti", na "mãe Merkel", um porto seguro, ou pelo menos mais estável do que se passa no resto do mundo. Os mais descontentes, aqueles que não se satisfazem com o título de "campeão das exportações" nem com uma imprensa largamente acrítica nestas matérias, aqueles que sentem que são companhias, conglomerados e lobbies que determinam cada vez mais a agenda política, abstêm-se do voto ou optam por partidos xenófobos como o Alternative für Deutschland, canalizando a sua frustração contra os mais fracos e estrangeiros. Não é, pois, só em exportações que a Alemanha do mestre Lämpel lidera a Europa, mas também no medo — principalmente no medo do declínio social.


 
 
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Clara Ervedosa



 
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