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24-08-2017        Público

Kiev rima com frio e Ucrânia com inverno rigoroso. Pelo menos é esse o cliché instalado em Portugal. Quando se pensa na Ucrânia, imagina-se logo as paisagens brancas, com neve e gelo, gorros e luvas e talvez transeuntes apressados com os seus sobretudos e o vento a fustigar-lhes os rostos. Sim, é verdade que já passei por tais situações, nomeadamente quando na passagem do ano de 2014-15 estive em Odessa e caiu um enorme nevão. Porém, estamos no mês de agosto. E nesta época do ano a Ucrânia pode ser ainda mais quente do que as temperaturas tórridas que é comum ocorrerem em Portugal. Durante as últimas semanas os termómetros rondaram várias vezes os 35 graus (positivos). Com este clima, rodeado de vegetação e à beira do espelho de água junto ao bairro onde estou instalado, chego a imaginar que me encontro algures numa região da Amazónia ou do Nordeste brasileiro.
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Sou acompanhado por alguém que viveu e cresceu neste mesmo lugar — uma cidade à beira do rio Dniepre, justamente no ponto onde o seu curso é mais amplo (cerca de 17km entre as duas margens), formando um autêntico mar. Nesta altura do ano, a paisagem é ainda matizada pelo horizonte azul-claro que o céu limpo de verão lhe permite sublinhar e enquadrada por uma vegetação verdejante de faias (as famosas beriÖzas), que são nesta região a espécie mais nobre e frondosa. Cidade plana, que se espraia na margem direita do rio, onde se formam pequenas ilhas e penínsulas, alvo de atração de pescadores e banhistas. A estrada de ligação a Kiev (cerca de 200km) continua bastante degradada, tal como nos últimos anos que por cá passei. Além de estreita, os buracos e a falta de sinalização tornam qualquer viagem de autocarro ou de carro (neste caso foi uma pequena van) uma aventura arriscada. A própria ponte que liga as duas margens junto à cidade encontra-se em obras de reparação, tal como a principal avenida, Boulevard Shevchenko (Taras Shevchenko, o poeta), a via mais larga e simbólica, com um espaçoso passeio pelo meio, a que os locais se referem como os “Campos Elísios”.

Apesar dos seus cerca de 300 mil habitantes, a falta de infra-estruturas é flagrante. Andar a pé na cidade conduz-nos por vias e caminhos tão precários que se assemelham, na minha memória pessoal, a qualquer pequena cidade do interior do Brasil ou até às veredas que percorria na infância no Alentejo, nos anos 60. A minha companheira mostrou-me o buraco onde caiu e arranhou um joelho num dia em que o pai a foi levar à escola, isto passou-se há cerca de 45 anos, em pleno regime soviético. O mesmo buraco, as mesmas pedras (!). Nestas circunstâncias, parece que a perenidade do espaço físico desafia permanentemente a nossa memória. Uma memória que, por estes dias, ganhou mais nitidez num contexto como este, onde os vestígios do tempo soviético se recompõem e se erguem à minha frente em diversos lugares, nos consultórios, no hospital público, nas longas esperas em serviços administrativos, nos autocarros antigos e ainda com revisoras (!), nos caminhos mal iluminados, enfim, nas visitas a casas de gente comum, que guardam tesouros a preto e branco preservados nos álbuns familiares que me entregam para vasculhar à vontade. Também as marcas de balas, de combates da II Guerra Mundial, são ainda visíveis em alguns edifícios, a comprovar que o tempo também corre para trás e nos devolve imagens em feedback.

Um país que saiu de uma experiência totalitária de mais de 60 anos e que sofreu o castigo persistente do estalinismo — num crime humano equivalente ao do Holocausto, com o climax de horror e a submissão forçada pela fome nos anos do Holodomor, que matou mais de cinco milhões de camponeses entre 1930-1931 —, recentemente invadido pela Rússia, que ocupa hoje partes do seu território, alimentando uma guerra que já colheu mais de dez mil vítimas desde o início de 2014 (sem contar com o lado russo), que se debate contra velhas e novas dificuldades, desde a corrupção e a atividade organizada de máfias (internas e externas) ao atual resgate financeiro e dependência de credores internacionais, passando pelo conjunto de pressões e chantagens que continuam a ser-lhe diariamente infligidas por Putin, com vista a desmantelar a economia e a corroer ainda mais as instituições do Estado, manietado que está por poderes ocultos e interesses que o descredibilizam por completo aos olhos da maioria dos cidadãos — dos cidadãos sérios e pacatos como é o povo ucraniano em geral, embora nos serviços públicos persista ainda uma atitude de arrogância herdada do tempo soviético. Sobre “política” pouca gente quer sequer ouvir falar. Antigos entusiastas da Revolução Laranja, outros mais jovens, ex-ativistas ou simpatizantes dos protestos do Maidan, parecem hoje desencantados da política.

Sucessivas gerações de ucranianos emigraram, os mais velhos recebem pensões do Estado de 80-100 euros, os que as recebem. Os mais novos, os que ficaram (estudem ou não), trabalham predominantemente em lojas, serviços e atividades comerciais. Há gente a vasculhar no lixo, mas subsiste uma florescente economia paralela, visível nas feiras e mercados à beira da estrada ou no centro da cidade. Aí, podem comprar-se, por exemplo, galinhas do campo sem que alguma ASAE interfira ou alguma “diretiva” europeia impeça o consumo de produtos naturais (sem certificação). Eis aqui, pelo menos, uma vantagem de se estar ainda longe da UE. As desigualdades de riqueza saltam à vista e notam-se também nos autocarros rudimentares e nos muitos Zaporojets dos anos 70, em contraste com os modernos SUV que circulam na cidade (e até o recente Modelo 3 da Tesla vi aqui ontem pela primeira vez).

Ao mesmo tempo que me defronto com estes contrastes no quotidiano, que são, no fundo, o reflexo de múltiplas divisões e reconversões em curso, reavivam-se-me fragmentos de memórias outras, a lembrar outros ressentimentos e outros paradoxos. Recordo-me de, nos anos 90, no âmbito de um estudo realizado no setor do calçado (em São João da Madeira), ter anotado que na fábrica de sapatos onde trabalhei alguns meses, a única delegada sindical (de um sindicato na época dirigido por um militante da extrema-esquerda) era uma trabalhadora pouco integrada no coletivo da força de trabalho e fervorosa beata, assídua peregrina a Fátima e que, por razões diversas, era objeto de marginalização pelos colegas. Era uma militante isolada do coletivo e católica praticante, o que, num ambiente sindical marcado por referências de esquerda radical, foi uma descoberta surpreendente. Olhando agora alguns personagens na cidade onde me encontro, vejo aqui algum paralelismo com isso. A minha anfitriã, por exemplo, que foi outrora ativista na juventude partidária comunista e que cresceu num tempo em que nas universidades se ensinava “marxismo científico”, entre outras disciplinas afins, tornou-se após a independência do país numa fervorosa e dedicada devota, frequentadora assídua da igreja ortodoxa local.

Não pretendo com isto pôr em causa a dignidade das opções de cada um, até porque, neste caso, a prática religiosa é uma atividade litúrgica e também de entreajuda e solidariedade que parece bem mais coerente e humanista do que a velha doutrina institucional soviética. Mas quando se está num território de um país (a ex-URSS) que mandou arrasar as igrejas por veicularem o “ópio do povo”, não deixa de ser curioso verificar como a religião e a fé se revelam, afinal, mais resilientes do que a doutrina oficial imposta pela força durante tantas décadas. E o bairro, apesar de bastante degradado, chama-se “Sempre Lavado” (tradução à letra), porque no passado era frequente ser inundado pelas águas do rio.

O clima continua quente e o Dniepre chama por nós. Mas, apesar do horizonte colorido desta imensa baía fluvial, confesso que prefiro as caminhadas inseguras do inverno, em fundo branco, entre os pinheiros cobertos de neve nas avenidas de Cherkassy ou até a aventura de escorregar na superfície gelada do Dniepre. Porquê? Talvez por esse ser o cenário que melhor corresponde ao estereótipo.


 
 
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Elísio Estanque



 
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Ucrânia