Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
07-07-2008        Revista de Opinião Socialista
A identidade de um movimento ou de uma instituição é sempre feita a partir das experiências do passado, bem como da memória e da narrativa dessas experiências. Assim, para compreendermos os problemas e contradições do sindicalismo português, importa começar por situar esse passado e essas experiências.

O ponto de partida para esta breve reflexão liga-se a um tema que tem estado nos últimos tempos na ordem do dia. Procura responder à interrogação que muitos portugueses colocam hoje, que é a de saber por que é tão difícil alcançar um pacto social alargado em Portugal em torno dos problemas laborais? Por que é tão difícil promover acordos "tripartidos"; que envolvam todos os parceiros e sejam subscritos pelas duas principais confederações sindicais (CGTP e UGT) e não apenas por uma delas?

Origens
Embora a actividade sindical tenha raízes fortes no movimento operário, tal não significa que o sindicalismo se assuma, todo ele, na defesa dessa herança. Desde sempre que as organizações sindicais foram palco de múltiplas influências tais como as do velho sindicalismo corporativo da sociedade pré-industrial (o mutualismo, o socorrismo), a doutrina social da igreja, ou as novas correntes revolucionárias, anarquistas, reformistas e internacionalistas promovidas pelas internacionais operárias de finais do século XIX. Além disso, como assinalaram alguns teóricos do movimento sindical (o casal S. e B. Webb), há que referir a primazia dedicada por muitos sindicatos às vertentes economicista, reivindicativa e funcional – o chamado "sindicalismo de mercado"; –, dando lugar às modalidades mais corporativas e institucionais do sindicalismo moderno, que ainda hoje prevalecem em muitos países (e que em Portugal possui maior expressão na UGT).

Para compreendermos o sindicalismo português importa considerar as suas origens e a importância das doutrinas e ideologias mais influentes no seu seio. É preciso recordar o desmantelamento do sindicalismo autónomo do período republicano – que desde finais do século XIX até à queda da República foi bastante vigoroso no nosso país – com a implantação da ditadura, em 1926, então substituído por sindicatos corporativos controlados pelo regime do Estado Novo. E merece particular realce o papel do Partido Comunista desde os anos 30 e durante todo o período salazarista. O PCP iniciou nessa altura o seu trabalho clandestino e começou a afirmar-se junto da classe trabalhadora como a única força organizada capaz de defender os seus interesses e resistir ao fascismo. A sua crescente influência viria mais tarde a dar frutos. Já nos finais da década de 1960, perante a relativa abertura permitida pelo marcelismo e na sequência de alguns movimentos grevistas, os sindicatos ganharam autonomia e dinamismo. Foi nesse contexto que, no ano de 1970, teve lugar a criação da CGTP (então apenas chamada Intersindical).

O pós-25 de Abril
Mas foi sobretudo após o 25 de Abril, no contexto revolucionário que então se viveu no nosso país, que o sindicalismo se expandiu e consolidou. A escassa pluralidade interna foi progressivamente reduzida. O I Congresso da Intersindical, que ocorreu em 1975, coincidiu com a aprovação da famosa lei da "unicidade sindical";, que reconhecia a CGTP como única estrutura federativa, representativa do conjunto dos sindicatos portugueses. Surgiu aí a grande clivagem do movimento sindical, dando lugar ao movimento "carta aberta";, contra a unicidade e em defesa da liberdade e do pluralismo sindical. Revogada essa lei (em 1976), a UGT seria fundada dois anos mais tarde.

É claro que nestas lutas pontificaram as fortes clivagens político-ideológicas, tendo por detrás as disputas partidárias da época. De um lado, o sindicalismo de base operária da CGTP/ Intersindical, dominado pelo discurso revolucionário e em larga medida instrumentalizado pelo PCP (apesar de se manterem no seu seio outras correntes minoritárias). De outro lado a UGT, apoiada desde a sua génese pelo Partido Socialista, em aliança com o então PPD – Partido Popular Democrático (hoje PSD) –, bem mais predisposta ao diálogo e negociação com o poder, já que, desde sempre, esteve mais próxima do governo e a estratégia política da sua criação se destinava em primeira mão a travar o PCP .

Assim, quanto à "autonomia"; do movimento sindical, pode dizer-se que, por um lado, nenhuma das centrais possui verdadeira autonomia, pois ambas foram largamente criadas e dinamizadas pela actividade partidária. Por outro lado, ambas são autónomas do ponto de vista formal. Porque são criadas por sindicatos livres, porque as suas estruturas dirigentes são eleitas em congresso, porque a democracia se funda na existência de partidos e porque, naturalmente, os trabalhadores são livres de terem uma filiação partidária.

Constata-se, portanto, que a divisão no seio do sindicalismo português tem sido uma constante. Se exceptuarmos esse momento singular de celebração unânime da liberdade – que foi o 1º de Maio de 1974 – as duas centrais sindicais construíram a sua identidade em boa medida por oposição e demarcação uma em relação à outra. Ao longo do tempo essa rivalidade foi-se tornando inevitável, pois ela funciona como alimento da própria construção identitária. Cada uma afirma-se na base de um discurso de diabolização da sua rival. Uma considera que a outra está ao serviço do patronato, que aceita as propostas do governo em troca de simples vantagens materiais e que não tem carácter de movimento; a outra considera que a rival é conservadora, que tem um discurso dogmático e ultrapassado, que obedece à estratégia política de um partido e que está sempre contra.

Duas visões contrárias
Um ponto decisivo que é necessário realçar é que essa divisão corresponde não apenas a distintos interesses e ideologias mas é reflexo de duas visões contrárias do mundo e da vida social. E essas duas concepções encontram suporte na sociedade, expressão de antagonismos entre subjectividades colectivas e individuais profundamente instaladas. A realidade é a mesma, só que, é perspectivada sob visões completamente díspares.

A primeira perspectiva diz-nos que os trabalhadores são indivíduos e, como indivíduos, competem uns com os outros pelo melhor salário, pelas oportunidades de carreira e pelo reconhecimento de chefias e de patrões, procurando recompensas de acordo com a sua percepção de justiça relativa e segundo as suas aptidões, dedicação e competências individuais. A competitividade empresarial e todas as grandes mutações ocorridas no mundo do trabalho alteraram a realidade laboral de tal modo que os sindicatos – cujo modelo organizativo e estratégias de acção foram concebidos num quadro laboral que entretanto se desagregou – se mostram hoje desfasados da realidade económica e social. Perante um panorama de crise e dificuldades, torna-se necessário que os empresários e os trabalhadores valorizem antes de mais os pontos de consenso e os interesses que têm em comum. Esta concepção tende a ignorar a importância do colectivo, bem como a força das estruturas sociais e dos mecanismos de poder. Trata-se no fundo da visão liberal e individualista da vida social. O que é bom para as empresas é bom para os trabalhadores. Quanto mais aquelas se modernizem e se tornem competitivas mais possibilidades têm de criar emprego. Se há desemprego, importa que quem possui menos aptidões e tem mais dificuldades em se adaptar às exigências do mercado, da inovação tecnológica e da produtividade dê lugar aos outros que estão no desemprego ou que não conseguem aceder a um primeiro emprego. Para tanto é necessário flexibilizar e adaptar a legislação para que o mercado possa funcionar. Esta é, portanto, a visão tecnocrática e funcional do trabalho e da vida das empresas, uma visão que, como se vê, está mais próxima do sindicalismo de mercado.

Uma segunda perspectiva aponta num sentido totalmente diferente. Existem estruturas sociais fundadas em desigualdades económicas e relações de poder assimétricas. E tanto no trabalho como na sociedade mais geral a força de trabalho está dependente e é no fundo a vítima de um sistema injusto. O trabalhador é o elo mais fraco e não tem possibilidade de se defender ou de negociar as suas condições de trabalho em termos individuais. É um ponto de vista que assenta na primazia do colectivo sobre o individual e enfatiza por isso a defesa dos direitos alcançados. Esta concepção – mais consentânea com a linha e o discurso da CGTP –, por um lado, vão ao encontro de subjectividades instaladas na sociedade que percepcionam o mundo como pautado por injustiças, divisões de interesses e por formas de exploração em que uns enriquecem à custa do esforço de outros. Mas, ao mesmo tempo, também se pressupõe que os trabalhadores produzem menos e trabalham pior se não se sentirem minimamente seguros. Melhores condições de trabalho criam mais estímulo e mais satisfação no trabalho. Pode também dizer-se que este discurso é, no fundo, autojustificativo, ou seja, pretende afirmar a necessidade e a importância das estruturas sindicais enquanto instâncias capazes de reequilibrar um sistema assente em fortes desigualdades.

O consenso é possível?
É possível que nesta dialógica resida o "nó górdio"; da questão. Apesar de serem visões encaixadas em paradigmas antagónicos, não significa que não possam evoluir para novos consensos. O problema é que os principais protagonistas dessas vozes desavindas se mostram incapazes de fazer emergir pontos de convergência. Tratando-se de uma dialéctica, pode dizer-se que ambas as leituras são verdadeiras. O que necessitamos é de uma nova síntese que nos lance para o futuro.

Estas visões contrastantes exprimem-se nas posições assumidas por cada uma das correntes sindicais quanto à recente proposta governativa de um novo código do trabalho. No acordo recentemente assinado pelos parceiros (excepto a CGTP) há um vasto leque de matérias, mas na verdade os pontos importantes – e factores de maior discordância entre o governo e os sindicatos – resumem-se a três ou quatro pontos. Na questão do combate à precariedade (contratos a termo certo e recibos verdes), bem como em diversos outros aspectos favoráveis aos trabalhadores, haveria consenso fácil, já que ambas as centrais reconheciam vantagens à proposta do governo. Os pontos mais quentes foram: horários, princípio do tratamento mais favorável, caducidade das convenções colectivas, adaptabilidade /despedimentos. Destes, o governo recuou no último, deixando cair o artigo da adaptabilidade "funcional";, que significaria, na prática, o despedimento em larga escala, dependendo apenas da vontade do patrão. Nos outros três aspectos parece ser evidente a quem favorece esta legislação – as empresas.

Em suma, a grande dúvida que hoje se nos coloca não é tanto a de saber se a reforma das leis laborais é ou não necessária. Todos sabemos que é. Não é tanto saber de que lado está a razão. Todos sabemos que ninguém é dono exclusivo da verdade. Também não é a de saber qual das duas centrais sindicais é mais livre e autónoma. Porque os limites à liberdade e à autonomia são fortes tanto numa como noutra, e isso faz parte da sua própria história. Vale a pena perguntar é se esta nova legislação laboral irá contribuir para estimular a criação de emprego, promover a competitividade da economia e combater a precariedade (sobretudo quando se sabe que o Estado não dá o exemplo na sua própria casa).

Pode também perguntar-se se de um governo socialista seria de esperar que flexibilizasse horários (sem o devido pagamento de horas extraordinárias), que facilitasse despedimentos, e que esquecesse (ou secundarizasse) o princípio do tratamento mais favorável (rompendo com posições anteriores assumidas pelo PS). Se um partido que tem no marxismo uma das suas principais referências doutrinárias deve assacar aos trabalhadores a exclusiva responsabilidade dos défices de produtividade. Finalmente, cabe ainda perguntar se os objectivos (mal disfarçados) de fragilização do sindicalismo trarão efectivamente vantagens para os trabalhadores e para as empresas. No grau em que estamos quanto aos nossos défices democráticos, estou convencido de que a fragilização do sindicalismo mais combativo é sinónimo de fragilização da democracia. E pior ainda: num país tão marcado por dependências, tutelas, abusos de poder e retraimentos no trabalho, os estímulos à produtividade requerem antes de mais uma estratégia de desenvolvimento que comece por oferecer garantias de segurança a quem produz; perspectivas de futuro a quem está à beira da pobreza ou sobre-endividado; e que exija iniciativa, respeito pela lei e visão estratégica a quem é suposto liderar as empresas.


 
 
pessoas
Elísio Estanque