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14-01-2009        Diário de Coimbra
A história das revoluções já mostrou há muito as enormes perversões a que dão lugar os grandes processos de mudança sociopolítica. Mesmo tratando-se de experiências carregadas de sentido emancipatório (para quem era vítima da ordem vigente), a destruição das velhas elites não visa – apesar da retórica – dar o poder ao povo, mas sim abrir espaço para que nasçam e floresçam novas oligarquias, classes e sectores privilegiados (em geral constituídos pelos ex-agentes revolucionários).

Abre-se então um novo ciclo que concebo na mesma linha do que há semanas escrevia Rui Tavares: "a primeira geração de ideólogos acredita que os seus princípios vão salvar o mundo. A segunda geração de partidários descobre com prazer que, além disso, as alavancas do poder permitem beneficiar amigos e a si mesmos (e de caminho vão salvar a nação e o mundo!). A terceira geração de governantes instalados dá por si a fazer o contrário de tudo o que os princípios ditavam. Mas é preciso salvar a nação e o mundo!" (jornal Público, 22/12/2008).

Esta concepção da mudança cabe que nem uma luva na analise do actual estado de perplexidade e de crise que se vem adensando no nosso mundo global, ao mesmo tempo que nos permite perceber melhor a natureza do poder político (e social). Com base nela podemos olhar com outros olhos as últimas três décadas da democracia portuguesa (ou até as tendências em curso no Brasil de Lula). Podemos talvez acrescentar lucidez à evolução dos partidos – de esquerda e de direita, se bem que estes nem se dêem ao trabalho de fingir que querem salvar o mundo –, designadamente aos portadores das grandes causas sociais.

O poder corrompe e perverte. Já o sabemos. Todos os porta-vozes das soluções mais justas chegam carregados de boas intenções; acreditam que o que fazem é para o bem de todos; alguns justificam que, por serem dotados de uma visão mais ampla e de capacidades de liderança têm, necessariamente, de ocupar as posições de maior responsabilidade; são precisos recursos e gente capaz; gente capaz de pôr os projectos em prática, mas sobretudo que seja fiel e obedeça aos seus dirigentes. Esses profissionais tornam-se, entretanto, os novos "fiéis da corte" que é preciso manter satisfeitos. E assim as novas cliques se vão tentando consolidar no poder. As camadas de cima e as que se situam imediatamente abaixo começam a sobrevalorizar as dificuldades dos seus próprios cargos, criando o clima para se auto-remunerarem na mesma proporção. O poder hegemónico cria e reproduz as suas almofadas e alimenta fantásticas ilusões junto dos que estão por baixo. Uma delas é a mensagem que, de tantas vezes repetida, acaba por se tornar verdadeira aos olhos dos seus próprios emissores: "sem nós será o caos".

Os representantes do paradigma dominante agarram-se até poderem à ideia de que, não havendo melhor alternativa, é preciso defender o que existe. Se não existe um novo modelo que dê garantias de funcionar melhor é porque o actual não falhou (crêem)! Mas é falsa a ideia de que a critica só é séria e legítima se quem critica souber fazer melhor. Uma ideia que revela a arrogância e o cinismo do poder dominante, visto ser ele o único lado que pode aproveitar o pensamento crítico e cooptá-lo em seu benefício.

E enquanto não surge essa nova doutrina "prontinha a usar" continua-se a lavrar no mesmo raciocínio, ou seja, "enquanto as pessoas não descobrirem que lhes falta uma chave de fendas, continuarão alegremente a usar um martelo para desapertar parafusos". Eis uma boa metáfora que nos pode ajudar a entender não apenas porque chegámos até aqui, mas porque é tão difícil vislumbrar uma nova luz ao fundo do túnel.

 
 
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Elísio Estanque