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10-08-2002        Público
Nas sociedades democráticas, os sistemas de relações laborais e de direito do trabalho desenvolveram-se dando resposta a uma dupla tensão. A primeira contrapõe o status do trabalhador ao contrato. A solução encontrada foi a do reconhecimento de que o trabalho não é uma mercadoria e, não o sendo, aos cidadãos nas suas relações de trabalho não se lhes aplicaria o direito civil mas sim um direito de natureza social. A especificidade das normas laborais internacionais e nacionais encontraram, assim, a sua identidade política e jurídica no princípio da discriminação positiva da parte mais débil no contrato de trabalho, o trabalhador, recusando o tradicional paradigma civilista de igualdade formal, gerador de injustiça e iniquidade, quando aplicado às relações laborais.

A segunda tensão contrapõe o princípio do mercado ao princípio do diálogo social. Devido à inadequação da regulação de base estritamente mercantil das relações laborais, o Estado e a sociedade civil encontraram formas de regulação social típicas da esfera laboral, como a negociação colectiva, a concertação e o diálogo social revigorados, nos últimos anos, pelas orientações da OIT e da UE. O princípio do diálogo social, assente na capacidade de auto-regulação dos parceiros sociais ou na regulação tripartida envolvendo o Estado, empregadores e trabalhadores em diferentes níveis negociais, configura-se como uma alternativa ao paradigma político liberal, o qual endossa ao mercado a regulação das relações e condições de trabalho.

As exigências democráticas, associadas à construção da dimensão social da globalização e à defesa do modelo social europeu, reforçaram o imperativo da especificidade dos direitos humanos do trabalho expressos em conceitos e programas de acção como os do trabalho digno, cidadania laboral, qualidade do trabalho, estratégia para o emprego, etc..

As reformas necessárias ao ajustamento de trabalhadores e empresas às novas realidades sócio-económicas e ao incremento da competitividade empresarial, para se manterem no horizonte democrático, não podem fazer perder a especificidade do Direito do Trabalho.

Apesar da controvérsia em torno do anteprojecto do Código de Trabalho, nele se reconhecem medidas interessantes. No entanto, a análise estrutural dos pressupostos subjacentes à proposta do governo suscita uma dupla crítica. A primeira radica na discordância relativamente ao modo como se justifica o aumento, necessário e defensável, da competitividade e da produtividade, esquecendo que o trabalho e as pessoas não são uma mercadoria. Neste sentido, a proposta rompe o difícil equilíbrio da partilha dos riscos e da segurança, entre trabalhadores e empresas, optando, claramente, por favorecer um dos sujeitos da relação. Exemplos desta escolha, encontram-se na promoção do contrato a termo, nas cláusulas de polivalência funcional, horários de trabalho e despedimentos. Confrontemos o alargamento da contratação a termo com os seguintes dados relativos a Portugal: em 1999, o peso do trabalho não permanente era de 18,6%, sendo de 13,2% a percentagem registada para o conjunto dos países da UE; em 1999, o total dos contratos não permanentes afectava 17,6% dos homens e 21% das mulheres; em 2000, ocupávamos o segundo lugar na lista de países com maior índice de trabalho temporário (22,7% mulheres e 18,4% homens); em 2001, o trabalho atípico atingia 14,6% dos homens e 24,2% das mulheres (INE). A penosidade e os elevados ritmos de trabalho, bem como a maior exposição aos riscos profissionais, acidentes de trabalho e diferentes formas de violência psicológica, estão, também, segundo estudos europeus, directamente relacionados com a contratação a termo e com a atipicidade das relações laborais, entre outros (European Fundation). Os dados sugerem que o potencial aumento da contratação a termo influenciará o crescimento dos já dramáticos indicadores relativos aos acidentes de trabalho, discriminação entre mulheres e homens, falta de condições de trabalho e atipicidade.

Importa sublinhar que a estratégia europeia para o emprego consagra explicitamente a promoção de um trabalho regido por "uma segurança suficiente, um melhor estatuto profissional" e a "adopção de uma abordagem que consagra a integração do objectivo da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres". Não se vislumbra, assim, que seja possível invocar o modelo social europeu como fonte de legitimação para as alterações propostas. Assuma-se com clareza que estamos perante uma perspectiva política pró-patronal das relações de trabalho.

A segunda crítica assenta na solução encontrada para desbloquear a negociação colectiva. A conjunção da aplicação da regra da caducidade das convenções com a arbitragem obrigatória é uma solução musculada que não fomentará o diálogo social e tenderá a acentuar as características adversariais do nosso sistema de relações laborais. O equívoco da proposta nasce da presunção de se admitir que as dificuldades no desenvolvimento de uma cultura de negociação e de responsabilidade partilhada entre os parceiros sociais, tem como alternativa a imposição paternalista de uma solução. Também neste domínio, encontramo-nos às avessas das orientações da OIT e da UE, que insistem na implementação do diálogo social. Convirá ainda referir que a OIT solicitou ao governo português a tomada de medidas visando alterar o regime em vigor da arbitragem obrigatória "de modo que a legislação seja elaborada em conformidade com a convenção (n.º98) e que as partes não possam decidir de outro modo, a não ser recorrer conjuntamente à arbitragem obrigatória". Critica-se a existência de uma legislação que permita a uma das partes impor unilateralmente a intervenção da autoridade administrativa para recorrer a uma arbitragem obrigatória o que não favorece a negociação colectiva.

A reforma da legislação laboral é necessária. No entanto, a actualmente em curso, ao filiar-se numa visão do mundo estritamente empresarial que esquece as pessoas e a sua dignidade perante o trabalho, só poderá induzir, indesejavelmente, à radicalidade e à conflitualidade social. A incerteza e contingência sociais associadas à actual proposta de código de trabalho, convoca o recurso ao princípio da precaução, ou seja, face à existência de dúvidas minimamente consistentes sobre a eventual produção de danos irreversíveis decorrentes da sua aplicação, devem reconsiderar-se os pressupostos da proposta.

Adenda – Já agora, porque não promover em sede de concertação social, à semelhança do que ocorreu em Espanha, um acordo sobre a estabilidade no emprego com o propósito de conter a contratação atípica e promover a passagem dos contratos a termo para contratos por tempo indeterminado? Porque não negociar em sede de concertação um acordo sobre produtividade e salários? Porque não tornar mais próactiva a actividade conciliatória? Porque não debater a criação de um sistema autónomo, independente e tripartido de conciliação, mediação e arbitragem? Porque não implementar o diálogo social e a formação de negociadores? Em suma, porque não prosseguir uma reforma decente do Direito do Trabalho?

 
 
pessoas
António Casimiro Ferreira