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15-06-2008        Jornal do Bloco de Esquerda
O que acha das propostas apresentadas pelo governo para a revisão do código de trabalho?

A resposta não pode ser simplesmente do tipo sim ou não. A proposta do governo é para negociar e, como cidadão, espero que venha substancialmente alterada por via da negociação com os parceiros sociais.
A proposta do Governo toca num dos elementos mais problemáticos do nosso sistema de relações laborais e das relações laborais num sentido muito amplo: a atipicidade, que corresponde a uma tendência que vai marcando o desenvolvimento das sociedades contemporâneas.

Quais são as especificidades da sociedade portuguesa face a essa tendência?

A experiência portuguesa aponta para uma radicalidade da experiência da atipicidade, radicalidade essa que se consubstancia no facto de termos das mais elevadas taxas de trabalhadores com contratos a termo, das mais elevadas taxas de falsos trabalhadores autónomos, os célebres recibos verdes, de termos um grau de trabalhadores naquilo que se designa por economia informal muitíssimo elevado.
É bom também não esquecer que a sociedade portuguesa tem outros indicadores que revelam a fragilidade dos cidadãos e cidadãs mais vulneráveis. A acrescer às diferentes expressões da atipicidade, temos também as diferentes expressões da pobreza, da exclusão social e sobretudo da desigual distribuição do rendimento entre os portugueses, portanto eu diria que a atipicidade que encontramos no mercado de trabalho português indicia fortes factores de anomia social, de anomia laboral.

Qual a sua opinião sobre as medidas propostas pelo governo em relação aos recibos verdes e aos contratos a prazo?

A intenção parece-me interessante e louvável, o conteúdo das medidas é discutível.
Quer os recibos verdes, quer os contratos a termo que correspondem a situações de incumprimento da Lei, de ilegalidade, não podem ser alvo de um branqueamento legislativo que de repente os torne como coisa normal.
Há aqui uma diferente concepção, no meu entender, entre aquilo que o Estado deve fazer em sede negocial e aquilo que deve fazer enquanto representante do interesse geral.
As situações de contratação a termo que assentam numa base profundamente ilegal e aquilo que é o recurso ilegal aos recibos verdes tem de ser alvo de uma fiscalização, tem de se fazer aplicar a lei, não tem de se negociar condições para aplicar a lei, o que acaba por de alguma maneira deslegitimar o próprio estado de direito.

No caso dos falsos recibos verdes nos Centros de Novas Oportunidades, o Estado, o Governo e em particular o Ministério que tutela esta área estão a violar a lei...

Três ou quatro comentários: o primeiro é de que sem surpresa nos apercebemos disso. O Estado não é uma entidade consequente na sua actuação pública, nenhum Estado é.
O segundo é que, genericamente, os Estados evidenciam discrepância entre aquilo que são os princípios orientadores e aquilo que é a sua prática.
Quando se trata de um processo de reforma social que toca no cerne da vida das pessoas, como é uma reforma sobre o trabalho, as coisas são um pouco mais delicadas e aí é evidente que se teria dado um sinal mais importante para a sociedade civil e para os parceiros sociais se o Estado tivesse arrumado a casa primeiro e depois se dispusesse a negociar com os parceiros sociais até porque, e este é o terceiro comentário, há aqui uma dimensão estratégica neste processo negocial que também é perturbante. Tem sido evidenciado o facto do Estado cada vez mais querer fazer convergir, quer os mecanismos de protecção social, quer o regime de regulação das relações laborais, o sector público com o sector privado. Se o Estado quer convergir com o privado legalizando a precariedade então eu fico muitíssimo preocupado. Será a convergência na precariedade e na atipicidade?

Sobre a caducidade da contratação colectiva, o que pensa das propostas que estão feitas, tendo em conta que a posição apresentada pelo governo está bastante longe daquela que foi assumida pelo PS, na discussão do Código Laboral há cinco anos?

Que existe uma contradição entre as propostas do Partido Socialista na oposição e as actuais propostas é um facto. E sobre isso não me vou pronunciar, quem tem que gerir essa contradição é quem a criou.
A negociação colectiva foi historicamente a primeira área da sociedade a ser sujeita ao princípio da auto-regulação, consistindo este na capacidade que duas partes têm para produzir lei, acordos, convenções colectivas. Este princípio generalizou-se desde o século XIX e sobretudo ao longo do século XX, na exacta medida em que a negociação colectiva ia sendo a base típica de regulação das relações laborais sobretudo no que se designa por relação salarial fordista. É evidente que as coisas se transformaram mas de entre as transformações todas há uma que não se modificou: a capacidade dos parceiros sociais, entre si, produzirem acordos. Isso não acontece e em alternativa dá-se um prazo de vida às convenções no sentido de dizer que, se não forem alteradas dentro do prazo de dez anos, caducam. Aqui há uma subversão do princípio da auto-regulação das partes.
A solução para ultrapassar os bloqueios da negociação é pura e simplesmente fazer tábua rasa daquilo que foi um resultado possível e alcançado com o consentimento das partes? Não me parece razoável, o que me parece razoável é que o Estado tenha uma atitude preventiva.
Se o regime da caducidade vier a ser estipulado isso configura uma situação de intrusão na liberdade negocial das partes. Há aqui um carácter compulsivo que eu não sei, no plano dos princípios, compaginar com aquilo que é a liberdade negocial associada à negociação colectiva defendida pela OIT.
E, em terceiro lugar, há o facto do actual código do trabalho já ser ele flexível. Efectivamente o código de trabalho contém já clausulado suficiente que permite a negociação da adaptabilidade de uma forma individual, permite as flexibilidades todas, portanto eu diria: façam cumprir o código com aquilo que ele tem de mau, mas também com aquilo que ele tem de bom.

A nova justa causa, de despedimento por inadaptação às funções, não correrá o risco de agravar o assédio moral nas empresas?

Portugal tem um indicador terrível sobre o assédio psicológico, o assédio moral e o assédio sexual e mesmo sobre a discriminação das mulheres: não há acções nos tribunais. Os obstáculos à realização do direito, de carácter cultural, político, social e económico, são tão grandes que não conseguem desocultar este tipo de conflitualidade que existe, em que os direitos são violados todos os dias, mas que não conseguem encontrar tradução no espaço público.
Quanto à questão do despedimento, duas ou três ideias: a primeira é de que o problema do despedimento é uma falsa questão em Portugal. Tornou-se muito relevante a partir da altura em que a OCDE criou o ranking no que diz respeito à avaliação do grau de rigidez e flexibilidade da legislação laboral, indexando os países entre aqueles em que era mais fácil e onde era mais difícil despedir. O que importa sublinhar é que formalmente a legislação do despedimento aparece como elevada no caso português sendo que na prática não o é. A OCDE nunca levou em consideração o modo como o direito era aplicado. Isto fez com que se criasse uma ideologia de que em Portugal o despedimento era muito rígido, que era difícil despedir as pessoas, ninguém era despedido e todos tinha emprego para toda a vida... Ora, nós sabemos que isso é rigorosamente falso. Aliás, se fosse verdade, não podíamos dizer, como dizemos, que um dos principais mecanismos de ajustamento do nosso mercado de trabalho aos ciclos económicos é o emprego, isto é as pessoas que passam da situação de emprego para o desemprego. O desemprego funciona como válvula de escape do sistema.
O que em regra se diz é que as causas que são invocadas são muito difíceis, mas o que nunca se diz é que Portugal tem uma queixa na Comissão Europeia pelo facto do despedimento colectivo ser demasiado liberal. E que eu saiba, qualquer empresa, independentemente da sua dimensão, pode utilizar a figura do despedimento colectivo para fazer face a essas vicissitudes da produção. Para já não falarmos dos lay-offs e de outras modalidades que estão consignadas na lei.
Seja como for, suponho que essa não é a verdadeira razão da reforma laboral.
O que está aqui em causa, a verdadeira razão de ser desta reforma laboral é apenas uma, repito, não é a questão do despedimento, isso é como se diz na gíria atirar poeira para os olhos. Essa é uma questão ideológica das mais seriíssimas, mas o que está aqui em causa é tão somente a questão da adaptabilidade dos horários de trabalho e naquilo em que a adaptabilidade dos horários de trabalho se relaciona com o trabalho suplementar porque naturalmente num país como o nosso, onde os salários são baixos as horas extraordinárias, como se costuma chamar, servem como complemento de salário. A partir do momento em que se consigam introduzir factores de adaptabilidade na flexibilidade horária ela traduz-se também em flexibilidade salarial. E aí sim, aí baixam os custos de produção. Essa é a verdadeira motivação para a reforma do código.

 
 
pessoas
António Casimiro Ferreira