Centro de Estudos Sociais
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30-11-2000        Visão
Na semana passada reuniram-se em Coimbra 60 investigadores de 6 países diferentes, no âmbito de um projecto intitulado "A Reinvenção da Emancipação Social" que estou a dirigir no Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, financiado pela Fundação MacArthur (investigação realizada na África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia e Moçambique) e pela Fundação Calouste Gulbenkian (investigação realizada em Portugal). Neste projecto estamos a analisar os movimentos e as lutas que em vários países resistem contra a globalização neoliberal, tão dinâmica quanto predadora, contra a exclusão social, a corrupção e os novos totalitarismos privados que ela engendra. Trata-se de lutas difíceis em que os seus protagonistas correm muitos riscos mas que nem por isso deixam de proliferar animadas por cidadãos que se recusam a cruzar os braços. Ao planear este encontro, mal podia imaginar que o iria dedicar a um desses cidadãos inconformados com as injustiças do mundo e, ainda por cima, a um querido amigo, o Carlos Cardoso.

Duas horas antes de ser assassinado, Carlos Cardoso tinha confirmado ao Juiz Conselheiro João Carlos Trindade que no dia seguinte faria uma palestra sobre "O Papel da Comunicação Social na Luta contra a Criminalidade" no Centro de Formação Jurídica e Judiciária, uma instituição recente e inovadora onde estão a formar os magistrados e demais pessoal do sistema judicial em construção. Calaram-no a tiro antes que pudesse falar. Aliás, na opinião dos seus assassinos, ele já falara demais e por isso o mataram. Um dos pioneiros dos jornais por fax, Carlos Cardoso transformara o Metical na voz dos que não tinham voz ou tinham medo de falar. Um entusiasta do processo de paz e de democratização, Cardoso previra antes que ninguém o perigo de vincular o objectivo nobre da democracia às imposições violentas da globalização neoliberal, ao desmantelamento das frágeis estruturas produtivas, à privatização atribiliária, incubadora de corrupção, à perda das referências ideológicas e éticas da luta por uma sociedade melhor e mais justa com que Samora Machel tinha inspirado toda uma geração de jovens moçambicanos.

Carlos Cardoso era um nacionalista esclarecido, um homem que acreditava na emergência de uma burguesia nacional, não de uma burguesia corrupta e rentista empenhada apenas em captar os negócios chorudos das privatizações, mas sim de um burguesia produtiva capaz de maximizar a produção dos recursos e produtos que Moçambique poderia colocar no mercado mundial. A força desta convicção era o que verdadeiramente o movia na luta contra a corrupção, o oportunismo e as violações dos direitos humanos: a especulação dos terrenos, o escândalo do BCM e do Banco Austral, a queima de pesticidas, a violência policial, os aumentos dos salários dos vereadores do Conselho Municipal, a corrupção nos serviços de floresta e nas alfândegas, etc. A sua luta pela democracia, pela transparência e pela integridade era incondicional e implacável. Exigia de si uma total independência. Tanto atacava a Renamo como falava das "alas gangsterizadas da Frelimo". Actuava, pois, sem padrinhos. Foi fácil abatê-lo.

Três apelos: que a Carlos Cardoso seja atribuído um grande prémio internacional de jornalismo de investigação; que os jornalistas moçambicanos não se deixem intimidar e continuem o Metical e o espírito do Metical; que o Governo, tal como já prometeu, não se poupe a esforços para punir os criminosos já que este caso vai ser um teste decisivo à investigação criminal, ao sistema judicial e à democracia em Moçambique.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos