Centro de Estudos Sociais
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08-02-2001        Visão
A regulação social nas sociedades capitalistas modernas assenta em três pilares: Estado, mercado e comunidade. A articulação entre eles bem como o peso de cada um deles tem variado ao longo do tempo. Tanto o mercado como a comunidade constituem a esfera autónoma da actuação dos cidadãos, o que veio a designar-se por sociedade civil. Mas enquanto no mercado a autonomia é usada para fazer valer interesses particulares segundo a lógica da concorrência, na comunidade a autonomia é a expressão da obrigação política horizontal, entre cidadãos, na promoção de interesses comuns segundo a lógica da solidariedade. Desde o início, a comunidade revelou-se o pilar mais frágil deste modelo de regulação, e a verdadeira articulação deu-se entre o Estado e o mercado, com períodos em que o Estado dominou o mercado (o capitalismo social-democrático) e períodos em que o mercado dominou o Estado (o actual capitalismo neoliberal). Este modelo está hoje em crise porque desapareceu a simetria entre o Estado, que se manteve nacional, e o mercado que, entretanto, se globalizou.


Ao dominar a esfera da autonomia dos cidadãos, o mercado passou a estar na base da concepção dominante da sociedade civil. Ao lado desta, sobreviveu uma concepção subalterna de sociedade civil assente na comunidade e na solidariedade. Esta dualidade, que sempre existiu a nível nacional, está hoje a emergir a nível transnacional ou global e teve nas últimas semanas uma afirmação dramática. Em Davos esteve reunida a sociedade civil global assente no mercado; enquanto em Porto Alegre esteve reunida a sociedade civil global assente na comunidade. A força revelada por ambas mostra que, de facto, não há uma mas duas sociedades civis globais e que a confrontação e o diálogo entre elas vai dominar a política internacional nos próximos anos. Tal como acontecera a nível nacional, a sociedade civil global portoalegrense é subalterna. Tem consigo a maioria da população mundial, mas tem contra si os poderes e os interesses que dominam essa população. É, contudo, uma força social em ascensão, enquanto a sociedade civil global davosiana dá sinais de estar perplexa, e em posição defensiva.

Não é fácil prever o modo como se vão ou não relacionar estas duas sociedades civis. Vai depender de muitos factores e, em especial, dos que hoje são responsáveis pela malaise da sociedade davosiana que, em meu entender, se manifesta de três formas: o perigo de uma recessão nos EUA; o medo de uma revolta dos oprimidos; a construção social e mediática da má consciência pela acumulação absurdamente fácil de riqueza só obtível pela acumulação absurdamente cruel de miséria e morte desnecessárias. A tarefa da sociedade civil portoalegrense vai incidir nos dois últimos factores. Para isso vai ter de usar uma pluralidade de meios, da acção directa à acção institucional, da confrontação ao diálogo. O objectivo é claro: conferir credibilidade e força social e política às muitas propostas já enunciadas ou em elaboração que, em conjunto, constituem uma globalização alternativa, a globalização da solidariedade e da reciprocidade, da cidadania pós-nacional, do desenvolvimento económico sustentável e democrático, do comércio justo como condição do comércio livre, do aprofundamento da democracia, dos parâmetros mínimos de trabalho, do respeito pela igualdade através da redistribuição e do respeito pela diferença através do reconhecimento.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos