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03-05-2001        Visão
Régis Debray, o intelectual francês, hoje um pouco esquecido, mas que nos anos sessenta se converteu à revolução e se juntou a Che Guevara, escreveu na altura que "a revolução revoluciona a contra-revolução". Queria dizer com isso que os EUA tinham aprendido mais e mais rapidamente com a revolução cubana do que a esquerda latino-americana. Tendo em vista as fortes medidas de segurança que foram montadas à volta do perímetro onde se realizou a Cimeira das Américas na Cidade do Quebec e a divisão que isso provocou nas manifestações de protesto, podemos dizer que os promotores da globalização neoliberal aprenderam mais rapidamente com as manifestações de Seattle de Novembro de 1999 do que os próprios manifestantes. No entanto, esta aprendizagem limitou-se às medidas de repressão e não envolveu as ideias alternativas ao neoliberalismo que, sobretudo desde Seattle, circulam por todo o mundo. O problema maior dos muros de rede é que as ideias passam facilmente através deles, e era do confronto de ideias que se poderia esperar algo de novo no Quebec. Infelizmente tal não sucedeu.


Uma leitura atenta da Declaração da Cidade do Quebec permite concluir que se trata de um monumento de retórica dirigido à deusa hipocrisia. As palavras mais frequentemente usadas no documento são democracia e direitos humanos, como se ele tivesse emergido de um conclave de governantes americanos reunidos para aprofundar a democracia nos seus países, lutar contra a corrupção, contra as escandalosas desigualdades sociais, contra a degradação abissal da educação, da saúde e da segurança social das populações. Ora não foi para isso que os governantes se reuniram. Reuniram-se para discutir a estratégia económica que com toda a probabilidade agravará os problemas sociais que acabo de referir. Essa estratégia consiste em criar uma zona de comércio livre desde o Alasca até a Patagónia que, ao contrário da União Europeia, não será precedida nem acompanhada por quaisquer medidas que corrijam as abissais diferenças de desenvolvimento entre os países desenvolvidos. Mais, será uma zona económica totalmente liderada pelas empresas multinacionais. Por exemplo, em todos os tratados de comércio até agora celebrados os conflitos entre os interesses económicos dos diferentes países têm de ser pleiteados pelos respectivos Estados. Assim acontece, por exemplo, na Organização Mundial do Comércio, onde não é a multinacional das bananas Chiquita que demanda a UE mas os EUA. Ora, nos termos propostos para a zona de comércio livre das Américas, as empresas multinacionais poderão interpor directamente acções contra os governos nacionais ou locais sempre que entenderem que as medidas por estes tomadas (defesa do ambiente, direitos laborais mais avançados) afectam negativamente os seus lucros. Ou seja, procura-se adoptar nas Américas o que não foi possível até agora adoptar globalmente: o Acordo Multilateral de Investimentos, aparentemente moribundo. Não admira que toda esta negociação tenha sido conduzida no maior segredo, tal como não admira que muitos governantes do Sul tenham mostrado sérias reservas ao formato do acordo. Para não ceder no essencial, os EUA decidiram ceder na retórica. Daí o documento. Irá haver em 2005 uma zona de comércio com este perfil? Difícil de prever. As ideias de uma globalização alternativa que estão a fervilhar no continente e de que Porto Alegre foi uma boa demonstração furaram facilmente os muros de rede, mas, por agora, não se sentaram à mesa das negociações.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos