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17-05-2001        Visão
A co-incineração ficará na história da nossa democracia como o protótipo da deliberação autoritária, que usa o disfarce da democracia formal para manipular cidadãos e instituições para além do que é admissível. O processo de decisão ainda não chegou ao fim mas é já possível mostrar o estrago que ele provocou na credibilidade do sistema de peritos e na relação de confiança que deve existir entre cidadãos e governantes.


A primeira descredibilização do sistema de peritos ocorreu no modo como foi regulamentada e funcionou a Comissão Científica Independente. A Comissão teve muito pouco de científica e nada de independente. As deficiências na busca de informação não foram até agora remediadas. O presidente publicou na página electrónica da Comissão um texto sobre o princípio da precaução que daria um chumbo ao aluno de pós-graduação que o escrevesse. Acima de tudo, a Comissão não teve condições para ser independente. Foi nomeada para dar parecer positivo ou negativo sobre a co-incineração mas com a condição de que se o parecer fosse positivo ela mesma viria a supervisionar o processo enquanto ele durasse, um trabalho remunerado que acresceria aos vencimentos que cada um dos membros da Comissão já aufere. Assim, o Presidente da Comissão, além do vencimento de professor catedrático, aufere uma remuneração correspondente à de director-geral. Objectivamente, criou-se um incentivo à decisão a favor da co-incineração. A comissão encarregada de dar parecer não deveria ser a mesma a quem competiria acompanhar o processo decorrente de um dado tipo de parecer. A comunidade científica portuguesa não estava preparada para este golpe e não tem mecanismos de controle deontológico para o neutralizar. Só nos resta esperar que os membros da Comissão se demitam dos seus cargos.

A segunda descredibilização do sistema de peritos atingiu a classe médica, nomeadamente os médicos que integraram o Grupo Médico e decretaram a ausência de riscos para a saúde e a impossibilidade de acidentes. Descredibilizados estão também os médicos da ARS que, para além de desvalorizarem os seus próprios dados, estão agora afadigados na elaboração de um estudo epidemiológico às populações e desesperam com a escassez de voluntários. Não se dão conta de que as populações não têm nenhuma razão para confiar neles. Tão pouco se dão conta que não tem qualquer representatividade um estudo baseado em voluntários cujos critérios de auto-selecção se desconhecem.

Com esta descredibilização empobrece a qualidade da nossa democracia, diminui a confiança dos cidadãos no Governo. E a missa ainda vai no adro. Devido à pressão de Belmiro de Azevedo-Troia e ao facto de a UE ser mais sensível aos danos causados à natureza selvagem do que às populações, é admissível um cenário em que toda a queima de resíduos venha a ocorrer em Souselas. Por outro lado, como próximo de Souselas se começaram a comprar terrenos a um preço muito superior ao corrente, as populações interrogam-se sobre se não será para ali instalar a estação de tratamento de resíduos. Neste caso, Coimbra seria definitivamente a Capital do lixo industrial. Este clima de suspeições, que podem ser totalmente infundadas, só poderia ser eliminado com uma intervenção esclarecedora por parte da Câmara Municipal de Coimbra. Mas esta, refastelada em sua mediocridade satisfeita, assobia para o lado.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos