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31-05-2001        Visão
Vivemos um período atordoado por processos massivos de destruição e de criação que deixam pouco espaço para consolidação ou desenvolvimentos orgânicos. A destruição e a criação ocorrem ao nível das instituições, das famílias, das empresas, dos hábitos de convivência, da gestão do corpo. Estes processos são muito selectivos, muito intensos em certas áreas da vida social e pessoal e quase imperceptíveis noutras áreas. Daí que a vertigem da mudança conviva de par com a sensação de estagnação. As mesmas pessoas que se viciam na internet e consomem energy drinks são as mesmas que fazem promessas a N. S. de Fátima quando algo de sério lhes corre mal.


Períodos deste tipo são difíceis de nomear e por isso os designamos por períodos de transição, embora nem sempre seja fácil saber donde vimos ou para onde vamos. O período actual tem uma vigência desigualmente global, ou seja, tende a ocorrer em diferentes países mas em cada um assume características específicas. Em Portugal as duas características principais são a experiência da dualidade e a dificuldade da auto-reflexividade. A experiência da dualidade consiste no aprofundamento dos contrastes sociais, políticos, económicos e culturais. A dramatização desta experiência entre nós pode exprimir-se na dualidade: Expo 98-queda da ponte de Entre-os-Rios. De um lado, a pujança modernista do progresso, da globalização e do multiculturalismo enquanto agentes e sinais da conversão de Portugal num país desenvolvido e moderno; do outro, um passado teimosamente presente de estagnação, abandono, descaso, apontando a dedo um país com carências próprias de um país subdesenvolvido incapaz de se transportar na totalidade para a Europa, para onde até há pouco só se transportava como emigrante. Esta dualidade percorre hoje a nossa economia, o Estado, as organizações da sociedade civil, a nossa personalidade, enfim, a nossa vida.

Esta dualidade está articulada já que nós somos um só país apesar de feito de muitos países. Mas o conhecimento dessa articulação é muito difícil em face da outra característica do período actual: a dificuldade da auto-reflexividade. A auto-reflexividade é o processo pelo qual os indivíduos e as sociedades reflectem sobre os processos de transformação por que estão a passar e usam essa reflexão para orientar essa transformação. Entre nós, a vertigem da mudança e da estagnação tornam muito difícil esta auto-reflexividade. Para uns, as mudanças são tão rápidas e tão promissoras que não há tempo para reflectir sobre elas. Há que cavalgar a onda. Se um corretor de bolsa parar um minuto para pensar na sua vida perde certamente dinheiro. Para outros, tornou-se tão penosa a vida em resultado das mudanças (insegurança de emprego, serviços públicos degradados, sáude à beira das más notícias, horas intermináveis no trânsito, empobrecimento das relações familiares "por falta de tempo") que, de duas uma, ou não há tempo para pensar ou é melhor nem sequer pensar.

A experiência da dualidade combinada com a dificuldade da auto-reflexividade fazem com que os portugueses não se possam hoje ver num espelho que os restitua de corpo inteiro. Em vez disso, têm de se ir vendo em vários espelhos, cada um deles reflectindo uma imagem, parcial, tão verdadeira quanto falsa. À mudança de um espelho para outro chamamos transição.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos