Centro de Estudos Sociais
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28-06-2001        Visão
Há um outro estado da nação, o que não cabe no debate sobre o estado da nação, o que não muda com mudanças de governo. Diz respeito a longas durações na sociedade portuguesa, a pactos seculares das elites, a desamparos e fragilidades de uma entidade colectiva abstracta que todos amam: o povo. Este outro estado da nação revela-se no particular, em acontecimentos que, apesar de isolados, revelam, pela sua exemplaridade, aspectos cruciais da vida colectiva que a conveniência política expulsa das generalizações com que constroi o estado da nação oficial. Um desses acontecimentos é o caso da Universidade Moderna, e refiro-o aqui pela exemplaridade com que ele revela o outro estado da nação.

Sociedade civil íntima. Há entre nós uma pequena sociedade civil cuja intimidade com o Estado e a classe política lhe permite realizar para benefício próprio uma dupla privatização do Estado, quer quando o Estado abre mão dos bens públicos e os "devolve" à sociedade, quer quando o Estado reserva para si a salvaguarda do interesse geral. Esta sociedade civil não reconhece a distinção entre o público e o privado e reproduz-se precisamente através da promiscuidade que promove entre os dois domínios. Paradoxalmente, fá-lo recorrendo a serviços e cumplicidades de profissionais a quem é pedido, a troco de dinheiro, manterem a sua colaboração no nível estritamente técnico e funcionalmente confinado e não perguntarem pelo "esquema maior" em que se integram.

Desigualdade perante a lei. Esta sociedade civil tem ao seu dispor todos os recursos da legalidade e da ilegalidade, e usa uns ou outros segundo as suas conveniências. Opera pelo tráfico legal e ilegal de influências. Quando, raramente, a ilegalidade é descoberta, tem ao seu serviço os melhores advogados e os mais competentes pareceres dos professores de direito. Não há inconveniente, antes pelo contrário, que haja conflitos de interesses. As elevadas remunerações existem para os resolver. No caso concreto, não há contradição nenhuma em que um dos advogados seja, por um lado, o pai e coordenador de uma reforma que almeja uma fiscalidade mais justa e mais eficaz e, por outro lado, defenda arguidos alegadamente envolvidos em evasões e paraísos fiscais. Dada a "complexidade" do caso, haverá certamente pareceres pelos quais são pagos milhares de contos. Passará despercebido que os casos "complexos" são os casos de quem tem dinheiro para comprar a complexidade.

A manipulação da opinião pública. A sociedade civil íntima tem no espaço público o seu maior inimigo e vê na comunicação social livre e independente uma ameaça constante. Daí que a procure controlar e, como sempre, pelo recurso em que abunda, o dinheiro. É, para ela, um factor de esperança que haja em Portugal muitos jornalistas avençados, tanto pelo Estado como pelos interesses económicos e que os jornalistas livres e independentes vão sendo gradualmente substituídos por fabricantes de conteúdos.

Este outro estado da nação, que não se esgota neste elenco, é vivido como trivial pelo cidadão comum enquanto olha ou lê distraído os debates sobre o estado oficial da nação. Mas o trivial não é vivido necessariamente com fatalismo. Por exemplo, no caso exemplar aqui referido, o cidadão pensará com os seus botões: "se estes não forem parar à cadeia então nunca mais nenhum poderoso será punido pela justiça que temos". E ficará na expectativa.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos