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04-10-2001        Visão
Tal como as pessoas, as sociedades raramente vivem em situações de equilíbrio. Os desequilíbrios são o motor da transformação social. No entanto, quando se acumulam para além de certo limite, põem as sociedades numa encruzilhada donde é possível vislumbrar diferentes e contraditórias alternativas de transformação, sem que seja possível prever qual delas virá a concretizar-se. É esta a situação em que nos encontramos depois dos trágicos acontecimentos de 11 de Setembro. Eles significaram uma acumulação extraordinária de desequilíbrios porque a magnitude da sua novidade só é comparável à novidade da sua magnitude: pela primeira vez, na história da modernidade ocidental, sempre capitalista e cristã, e sucessivamente colonialista, imperialista e globalizadora, grupos sociais que se arrogam representar povos e causas por ela oprimidos, humilhados ou silenciados contra-atacam de forma violenta e dramática no coração actual dessa modernidade e usando de forma exímia os meios por ela disponibilizados. Nunca os índios das Américas ou os colonizados da África alguma vez tentaram algo comparável.

Perante tamanho desequilíbrio, mudanças talvez profundas estão já em curso mas, como estamos numa encruzilhada, é impossível saber ao que conduzirão. A um futuro melhor ou a um futuro pior? As mudanças que me parecem mais ambíguas dizem respeito às relações entre o Estado e o mercado. Vivemos os últimos vinte anos sob a hegemonia crescente do mercado, transformado em elixir capaz de resolver todos os males da sociedade e sobretudo os causados pelo Estado burocrático e intervencionista. Com as Torres Gémeas caiu por terra este mito do mercado. Em primeiro lugar, foi chocante a insensibilidade do mercado ao sofrimento da sociedade americana e aos apelos à solidariedade: a bolsa de valores fechou para não mostrar a sua face egoísta; as companhias aéreas apressaram-se a lançar milhares de pessoas no desemprego; as seguradoras ameaçaram deixar de honrar os seguros; o máximo que os directores das empresas aceitaram foi o congelamento dos seus fabulosos salários durante dois anos; algumas empresas que mais empregados perderam nas Torres recusaram-se a apoiar os familiares das vítimas. Se alguém tinha dúvidas que uma sociedade de mercado seria eticamente repugnante, deixou de as ter. Em segundo lugar, o Estado readquiriu uma centralidade que há muito julgava perdida. Por um lado, viu bater-lhe à porta o antes omnipotente mercado, pedindo apoio financeiro extraordinário apenas para repor o business as usual. Por exemplo, passou quase despercebido que as companhias aéreas usaram a tragédia para repor os seus lucros: despediram primeiro e depois é que pediram os subsídios. Por outro lado, os cidadãos deram-se conta da vulnerabilidade ao risco que lhes tinha sido criada pela desregulamentação da economia e pela privatização da segurança nos aeroportos e exigiram uma maior intervenção do Estado.

Em face disto, estamos perante uma mudança do movimento do pêndulo, de novo na direcção do Estado? O congelamento de contas, a quebra do sigilo bancário, a supervisão de movimentos financeiros, o encerramento eventual dos paraísos fiscais e bancos offshore significarão uma desaceleração da globalização? Qual o impacto disto nos movimentos que lutam por uma globalização alternativa? A maior intervenção do Estado trará consigo a censura, o segredo de Estado, o estado de emergência, em suma, o Estado-fortaleza, a perda das liberdades e o empobrecimento da democracia? Estamos na encruzilhada.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos