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29-11-2001        Visão
Escrevo de Guadalajara onde estou a participar numa reunião do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais em que estão representados os 130 centros de investigação mais importantes da região. Duas décadas de neoliberalismo e os efeitos devastadores que provocaram nas sociedades latino-americanas contribuíram para que as ciências sociais do continente começassem a ganhar mais distância em relação às suas congéneres norte-americanas e procurassem reencontrar-se com a sua tradição crítica e analítica, renovando-a em função dos novos desafios. Esta reunião foi testemunho disso. Mas foi também testemunho da dificuldade desse reencontro num contexto universitário que se alterou profundamente nas duas últimas décadas e precisamente por influência das políticas neoliberais promovidas pelo Banco Mundial.

Os títulos dos livros recentes sobre as universidades são elucidativos: Universidade em Ruínas, Universidades na Penumbra, O Naufrágio da Universidade, A Universidade Sitiada, etc. As causas de um diagnóstico tão negativo têm a ver com a aplicação das políticas do Banco Mundial as quais, aliás, têm vindo a ter uma aplicação universal, inclusive no nosso país. Consoante os contextos, estas políticas são impostas como parte de pacotes financeiros ou são adoptadas por elites locais, técnicos de educação prestigiados e com poder político. Essas políticas têm o seguinte perfil geral: promoção da privatização; fim da gratuitidade das universidades públicas, substituída por um sistema compensatório de bolsas de estudo; criação, mediante esquemas de avaliação, da estratificação entre universidades, com acessos desiguais a recursos e com valores de mercado diferenciados atribuídos aos seus licenciados; atenuação da responsabilidade financeira do Estado pela universidade pública e o correspondente incentivo a que esta gere receitas próprias.

Estas políticas têm sido aplicadas de modo muito diferenciado. Por exemplo, o Canadá defendeu a universidade pública melhor que a Austrália, a Espanha, melhor que Portugal, o México, melhor que o Brasil. Mas, em geral, o que está em causa é a criação de um mercado educativo e a constituição de um capitalismo universitário. Três desenvolvimentos recentes são elucidativos. Primeiro, a emergência de universidades globais, quase todas norte-americanas e europeias, que vendem às universidades do Sul pacotes de programas de pós-graduação, presenciais ou à distância, mediante o sistema de franchising. Neste sistema, o controle da qualidade e da certificação dos títulos conferidos pela universidade local é feito pela universidade global. Segundo, o desenvolvimento das universidades de empresa, de que a General Motors foi pioneira em 1950 e de que há hoje, só nos EUA, cerca de 1600, onde se destacam a Universidade de Computadores da Dell ou a Universidade Sim Microsoft. Segundo um analista do Financial Times: "os investidores vêem o mercado da educação como uma nova fronteira que mal começou a ser colonizada pelas eficiências da internet". Este constitui o terceiro elemento da mercantilização da universidade e da educação em geral. O Banco Mundial pretende deixar de ser um banco de desenvolvimento para passar a ser um banco de conhecimento e os documentos recentes da Organização Mundial do Comércio sobre educação vão no mesmo sentido. A ideia é ambiciosa e assenta na premissa de que toda a actividade humana se organiza melhor se se organiza como mercado. Vai envolver a criação de empresas de serviços de professores, empresas de produção de materiais e textos e de empresas de avaliação dos alunos e de certificação. Vai envolver, sobretudo, a promoção do acesso ao conhecimento através de bancos de dados patenteados e, portanto, sujeitos ao pagamento de royalties.

Com este cenário em pano de fundo, como vai ser possível manter a autonomia analítica e crítica da investigação e do ensino universitários? Como escrevi um dia, se a universidade não se repensar, a curto prazo só terá curto prazo.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos