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21-02-2002        Visão
Não vai ser fácil aos portugueses esquecer António Guterres. Os portugueses conservadores não esquecerão a oportunidade dourada que ele deu à direita de conquistar o poder sem o merecer. Se ela falhar essa oportunidade dificilmente terá outra nos próximos tempos. Por sua vez, os portugueses progressistas não esquecerão que, com a sua atitude impensada, António Guterres pôs em causa a possibilidade de se construir um país moderno sem se agravarem as desigualdades sociais, sem se contrapor desenvolvimento a solidariedade. Se a esquerda for derrotada nestas eleições terá muitas dificuldades em voltar ao poder e quando voltar terá para governar um país muito diferente do que é hoje. Em ambos os casos, ninguém se lembrará do projecto político de António Guterres. Os portugueses progressistas lembrarão os seus bons ministros: Mariano Gago, Ferro Rodrigues, António Costa, João Cravinho, Sousa Franco, Manuel Maria Carrilho, Maria João Rodrigues e Paulo Pedroso. O não ter sido possível fazer convergir tanto talento num projecto transformador é uma das páginas negras da nossa democracia.

O "acidente" Guterres teve um efeito surpreendente: polarizou a distinção entre esquerda e direita e, com isso, deu aos portugueses uma razão forte para votarem nas eleições e para votarem segundo as suas convicções. O que está em aberto nestas eleições é a questão de saber se falhou ou não entre nós a possibilidade de um modelo de desenvolvimento social democrático, um modelo que combine competitividade com protecção social, crescimento económico com diminuição das desigualdades sociais. Pese embora a retórica dos discursos eleitorais e o próprio nome do partido, a vitória do PSD significará o abandono de tal modelo e a sua substituição por um modelo de desenvolvimento neoliberal assente na ideia de que o crescimento económico não é possível sem o agravamento das desigualdades. Dessa ideia decorre o desagravamento fiscal dos mais ricos e das empresas, a privatização da produção de bens públicos como a saúde e a segurança social, a oneração das classes médias e a desaceleração da protecção social. Em todos estes domínios, o que está em causa são opções políticas e não necessidades técnicas. O exemplo mais flagrante é a segurança social. As propostas do PSD põem em causa um dos melhores desempenhos do governo socialista, um sistema público de segurança social, financeiramente viável, consensualizado entre os parceiros sociais e com capacidade para gerar aumentos graduais das pensões mais baixas.

Para os portugueses de esquerda nunca foi tão importante votar segundo as convicções. E é tanto mais importante quanto é difícil. É desalentador que o PS tenha optado por um programa timorato numa altura em que era preciso sublinhar a divisão das águas e, sobretudo, que pareça ter interiorizado a derrota como se o mal que isso poderia trazer ao país tivesse a sobrepujante vantagem de clarificar internamente o partido. É desalentador que o PCP continue a ver no PS o seu maior inimigo e marginalize os seus melhores em nome de uma ortodoxia que só pode levar o partido ao desastre. Para que o desalento não seja total, resta-nos o Bloco de Esquerda por onde passa hoje a nova esquerda portuguesa, com uma concepção ética da política, um projecto político coerente, livre dos fantasmas do passado, a pensar numa sociedade aberta e solidária, num Estado eficiente mas não asfixiante, num espaço público onde os cidadãos contem mais que os lobbies. Entre alentos e desalentos, a verdade é que os portugueses progressistas têm à sua escolha o PS, o PCP e o BE. O importante é que escolham.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos