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02-04-2002        Diário de Notícias
Na sua coluna de 18 de Fevereiro, intitulada "A formalização do disparate", João César das Neves chama a atenção, com evidente agrado, para um livro de autoria de António Manuel Baptista (AMB), publicado recentemente. AMB critica nesse livro violentamente um outro de minha autoria (Um discurso sobre as ciências), publicado há mais de 15 anos em Portugal (Afrontamento, 1987, em 12ª edição), e posteriormente em vários outros países (Espanha, EUA, Brasil, Venezuela, Colômbia).

Bem menos do que uma crítica ao meu trabalho, o livro de AMB é antes um insulto. O autor limita-se a descontextualizar, falsificar e ridicularizar as minhas posições, não refutando as razões que as fundamentam e apenas as declarando erradas à luz da sua concepção de ciência, onde não cabem as ciências sociais, e que ele tem por única verdadeira e, como tal, se dispensa de justificar. É uma posição anacrónica que terá sido dominante no início do século XX, mas que no limiar do século XXI só pode ser defendida por ignorância. Como não tem argumentos racionais, razoáveis e respeitadores das diferenças, o autor recorre ao insulto.

Pelo seu escrito, César das Neves não se revela versado nos debates epistemológicos, mas a sua ignorância não o coíbe de aceitar acriticamente o livro de AMB e de invectivar contra o meu. As invectivas assentam em basicamente duas "ideias": 1. o meu livro é perigoso para os "nossos filhos" e contribui para o "desastre educativo nacional"; 2. eu sou um pós-moderno e, como todos os pós-modernos, sou um relativista. Vejamos cada uma delas.

Segundo César das Neves, o meu livro seria perigoso pela intoxicação que causaria em alunos indefesos e com isso contribuiria para o "desastre educativo nacional". Este tema é recorrente nos escritos da direita e também nos de AMB. Por exemplo, noutro dos seus dislates, desta vez contra José Saramago, publicado na Gazeta de Física (Vol. 24, Fasc. 2, 2001, p. 50), AMB, depois de vários jogos de palavras de mau gosto sobre a "reduzida inteligência" e a "cegueira" de Saramago, conclui a respeito das posições deste: "Mas quando ressaltam do trampolim, que é um Prémio Nobel, podem encontrar ressonâncias numa juventude que ainda não acordou de um sono de séculos. Isso é potencialmente perigoso e deve ser denunciado". São manifestações típicas daquele pensamento conservador que atribui às ideias que lhe são contrárias a fonte dos males da sociedade e que, na sua mentalidade censória e autoritária, prefere eliminá-las a discuti-las. Precisamente por esta mentalidade ter dominado no nosso país durante décadas, se não mesmo séculos, é que estamos na situação de atraso científico e educacional que o articulista deplora. É que quem vê perigo nas ideias acaba por ter medo delas e furta-se a discuti-las e a combatê-las com as únicas armas que asseguram o progresso da educação e da ciência: a discussão livre e racional das diferenças.
A segunda "ideia" diz respeito ao pós-modernismo. César das Neves não está a par do debate sobre o pós-modernismo nem sabe que nele há várias correntes e que algumas delas são igualmente concebíveis como cabendo no paradigma modernista. A posição que eu próprio defendo, a de um pós-modernismo de oposição, é uma delas. No plano social, esta posição implica reconhecer, por um lado, que os problemas que a modernidade ocidental procurou resolver (por exemplo, a compatibilização entre igualdade e liberdade) continuam válidos e devemos continuar a lutar pela sua resolução; por outro lado, que as soluções modernas para tais problemas estão hoje desacreditadas, havendo que buscar outras. No plano epistemológico, esta posição significa a defesa de uma "objectividade forte" (Sandra Harding), que não se confunda com neutralidade nem isole o conhecimento científico dos outros conhecimentos que circulam na sociedade.

Não admira que esta posição tenha sido considerada ora modernista e, como tal, criticada por autores pós-modernos, ora pós-modernista e, como tal, criticada por autores que defendem o paradigma modernista. Como, infelizmente, é nulo o debate entre nós sobre esta questão, ilustro a primeira posição com Peter Fitzpatrick (Modernism and the Grounds of Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p.191): "Afigura-se-me que não há nada na concepção universalista e utópica dos direitos humanos de Santos que a distinga essencialmente dos direitos humanos que ele descreve como sendo os que vigoram" (ou seja, a concepção modernista dos direitos humanos). A segunda posição está patente no modo como William Twining (Globalization and Legal Theory. Londres: Butterworths, 2000), analisa o meu trabalho no capítulo intitulado "Globalisation, Post-Modernism, and Pluralism: Santos, Haack, and Calvino". O que caracteriza mais especificamente a minha posição é a crítica do relativismo e a busca de um universalismo que não se limite à imposição universal de um particularismo qualquer, seja ele ocidental ou outro. Contra o monoculturalismo autoritário, que não reconhece a existência de outras culturas, e o relativismo, não menos autoritário, que as reconhece a todas por igual, proponho um multiculturalismo progressista que saiba reconhecer as diferenças culturais e construa de modo democrático as relações e as hierarquias entre elas.
Por carecer de conhecimentos e qualificações para entrar num debate epistemológico, César das Neves teve de recorrer ao sector informal do disparate. Não se terá dado conta de que nesse sector a precariedade é dupla: a ignorância do disparate combina-se com o disparate da ignorância.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos