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22-08-2002        Visão
A Ilha de Moçambique é um lugar incomparável, tanto pela sua história e pelas marcas visíveis dela na arquitectura e na arqueologia subaquática, como pelas suas potencialidades enquanto centro de reflexão sobre contactos e relações interculturais; um futuro que a Ilha começou, de facto, a construir há muitos séculos, antes e depois de os portugueses ali aportarem no séc. XV. Fazendo jus a este impressionante conjunto arquitectónico, grande parte dele em ruínas, a UNESCO declarou a Ilha, em 1991, como património cultural da humanidade. Esta declaração faz com que a preservação e o florescimento da Ilha sejam tarefas imperativas tanto para Moçambique como para todos os restantes países do mundo, e nomeadamente para os que, para o mal e para o bem, partilham com Moçambique parte da sua história, como é o caso de Portugal.
O futuro da Ilha reside na valorização do seu riquíssimo património e no contexto único que ele pode oferecer para a promoção de diálogos entre culturas, para além, naturalmente, daqueles de que a Ilha é já testemunho vivo. Nesse futuro querem se activamente envolvidos os habitantes da Ilha e as suas associações como, aliás, decorre do estatuto de património cultural da humanidade. Ora, uns e outros estão preocupados. Temem que o seu património esteja a ser dilapidado se não mesmo pilhado. Ao largo da costa de Moçambique estão identificados e catalogados mais de cem naufrágios de navios, muitos deles à volta da Ilha. Um alvo apetecido para caçadores de tesouros. Desde há algum tempo, a empresa internacional Arqueonautas, em associação com a empresa moçambicana Património Internacional SARL, está a realizar pesquisa arqueológica subaquática à volta da Ilha. Desconheço os termos do contrato de pesquisa celebrado com o Governo moçambicano e a empresa moçambicana, mas a versão aprovada do contrato-tipo concede a esta empresa o direito de se tornar proprietária de bens culturais cujo valor represente 50% do valor global do total dos bens encontrados. Mesmo que se faça a ressalva de os objectos a conceder à empresa serem semelhantes a outros descobertos na mesma localização e não serem considerados de valor excepcional, fica aberta a porta para a venda do património da Ilha. Aqui reside a inquietação dos seus habitantes. Como não vêem nenhuma autoridade a fiscalizar os achados, perguntam-se sobre quem define o todo em relação ao qual se repartem os 50% dos achados. Como não são credivelmente informados, vêem ou imaginam ver peças valiosas a serem trazidas para terra embrulhadas em toalhas, vêem ou imaginam ver pequenos aviões a levantar do aeródromo do Lumbo com peças não declaradas, vêem ou imaginam ver peças valiosas exportadas sem controlo alfandegário.

Os habitantes e os amigos da Ilha estão inquietos e a sua inquietação aumenta cada dia que passa, sem que, estranhamente, o Governo moçambicano assine a Convenção da UNESCO sobre a protecção do património cultural subaquático, adoptada em Novembro de 2001, que expressamente proíbe a comercialização desse património. E só por uma via pode o Governo pôr fim a tal inquietação: assinando a Convenção e pondo fim a contratos que envolvam a comercialização do património arqueológico. Há que evitar o risco de a Ilha vir a perder o estatuto de património cultural da humanidade.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos