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12-12-2002        Visão
Portugal está afogado numa maré negra de corrupção. Depois dos fundos europeus, das obras públicas e do futebol seguem-se as forças de segurança e a pedofilia. Para o cidadão comum a corrupção tem um significado amplo: é todo o abuso de autoridade (pública ou privada) para benefício próprio. Neste sentido se fala de corrupção de menores. Há diferenças importantes entre a corrupção económica e a corrupção de menores. Têm, contudo, em comum o envolverem abusos de autoridade e serem manifestações do mesmo fenómeno geral de degradação ética da vida pública e privada. Como se chegou a isto? Num país que ainda vive o mito da austeridade da vida pública e privada que herdou do Estado Novo, os conservadores atribuem a maré de corrupção ao "excesso de democracia", enquanto os progressistas vêem nela o autoritarismo atávico dos detentores de poder.

O mais importante é saber como sair disto. Centro-me hoje na corrupção económica. Antes de tudo, é preciso combater a ideia de que corrupção é uma fatalidade resultante do aumento de outros tipos de criminalidade que criam oportunidades incontroláveis para a corrupção. Alguns tipos de criminalidade criam naturalmente novas interfaces entre potenciais corruptores e potenciais corrompidos. Mas essas interfaces só se transformam em práticas corruptivas porque os primeiros vêem a sua oportunidade na consabida disponibilidade dos segundos. Se tal disponibilidade não existir, os objectivos dos potenciais corruptores têm de ser canalizados para outros meios, como, por exemplo, contratar bons advogados ou obter pareceres de professores das Faculdades de Direito.

Quando a corrupção se transforma numa prática sistemática em que passa a assentar, em boa parte, a reprodução do sistema político e económico, a luta eficaz contra ela só pode ocorrer em duas situações. A primeira é quando a corrupção é tão generalizada que mina a coerência básica do sistema político. Nessa situação, a própria corrupção cria micro-estados dentro do Estado que se digladiam entre si (entre diferentes ministérios, forças de polícia, serviços de fiscalização e regulação). É então que começam as denúncias na comunicação social e o sistema de investigação criminal e judicial têm a oportunidade de actuar com autonomia. Foi o que aconteceu na Itália. A segunda situação ocorre quando a parte sã do sistema é suficientemente forte para arriscar a sua própria sobrevivência e estar preparada para aguentar as consequências decorrentes da amputação da parte gangrenada do sistema. Neste caso, o factor mais importante na luta contra a corrupção é a vontade política. Veja-se o caso da corrupção massiva no manejo dos fundos estruturais e de coesão. Apesar de tal facto ter impossibilitado a restruturação social e económica que nos livraria do medíocre futuro que agora nos espera na UE, o sistema de investigação e judicial foi lamentavelmente inoperante porque careceu de vontade política. Factos recentes da nossa sociedade - combate à corrupção miúda e neutralização das instituições de investigação quando tomam uma atitude mais activa e agressiva no combate à grande corrupção - mostram que Portugal não está, neste momento, nem na primeira nem na segunda situação e, enquanto assim for, não haverá combate eficaz à corrupção.

Quando houver vontade política para esse combate ele assentará no seguinte: restauração da ética de serviço público que a vertigem neoliberal deslegitimou ao transformar as instituições em agências de produção de serviços-mercadorias cuja distribuição está sujeita à lógica da oferta e da procura; formação de investigadores, polícias e magistrados orientada por uma cultura técnico-democrática e não técnico- burocrática; remuneração adequada dos funcionários públicos; punição exemplar da pequena e da grande corrupção.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos