Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
26-12-2002        Visão
O tempo do Natal é um tempo propício às manifestações de bons sentimentos e bons propósitos. Nas relações entre países ricos e países pobres tais manifestações são, em geral, hipócritas porque estão em contradição com a prática. No caso que passo a relatar a hipocrisia atinge o paroxismo. Denuncio-o nesta época como um presente cívico à nossa (má) consciência. Os países pobres estão a braços com um gravíssimo problema de saúde pública. São conhecidos os dados do HIV/Sida. Há 42 milhões de pessoas infectadas no mundo, dos quais 30 milhões em África. Mas os problemas são realmente graves no caso da tuberculose, da malária e mesmo das doenças não infecto-contagiosas. Segundo a Organização Mundial de Saúde, em 2020, estas últimas (doenças cardíacas, cancro e diabetes) serão 60% das causas de morte em África. A maior dificuldade que estes países enfrentam para resolver este problema reside no elevado preço dos medicamentos em razão dos direitos de patentes sobre eles detidos pelas grandes empresas farmacêuticas dos países ricos.

Devido a forte pressão internacional, a reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em Doha (Quatar) em Novembro do ano passado, adoptou uma declaração histórica que estabelece a prioridade da protecção da saúde pública em relação à protecção dos direitos de patentes. Apesar das suas ambiguidades, esta declaração abriu o caminho para os países pobres adquirirem medicamentos genéricos, a uma pequena fracção dos medicamentos de marca em casos de emergência de saúde pública. Enquanto a imprensa internacional cantava loas a esta manifestação de solidariedade internacional, a poderosa indústria farmacêutica começava a pressionar os seus governos (EUA, EU, Suíça e Japão) no sentido de reduzir ao mínimo o impacto da declaração. Iniciou-se então um processo de reinterpretação restritiva da declaração que certamente ficará na história da diplomacia dos países ricos como uma das suas páginas mais negras. Procurou-se reduzir os casos de emergência de saúde pública à sida, tuberculose e malária ou no máximo a pandemias infecto-contagiosas (que podem contaminar os cidadãos dos países ricos) e, mesmos nesses casos, para os EUA pelo menos a aquisição de genéricos só seria autorizada aos 49 países mais pobres e não aos países em desenvolvimento, em geral. Considerou-se que, afinal, a declaração só permitia ultrapassar os direitos das patentes no caso de os países produzirem os genéricos, devendo ser excluída a sua importação (o que punha todos os países africanos fora do alcance da declaração). O Japão defendeu que a declaração não se aplicava às vacinas, por não serem produtos farmacêuticos. Pela mesma razão, defendeu-se que não estavam incluídos os meios de diagnóstico (como os aparelhos de Raios X). A UE, através do seu Comissário para o Comércio - contradição com resoluções do parlamento europeu e dos parlamentos de vários países - esmerou-se na criação de um complexo e estúpido colete de forças legal que retira aos países pobres a decisão sobre emergências de saúde pública e a transfere de facto para a OMC. Quando a pressão sobre os representantes nacionais da OMC não pareceu dar resultado, foram feitas pressões directas sobre os governos para, em troca de outras vantagens comerciais, linharem as suas posições com a dos países ricos no domínio dos direitos de propriedade intelectual. Em face disto, não admira que a recente reunião da OMC em Genebra tenha terminado num impasse, ficando adiada qualquer decisão para mais tarde. Entretanto, perdeu-se um ano, um ano em que morreram de sida 3,1 milhões de pessoas das quais 2,4 milhões em África. É esta a macabra prenda de Natal que os países ricos dão aos países pobres.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos