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23-01-2003        Visão
Na sua mensagem de Ano Novo, o Presidente da República pediu aos portugueses para serem optimistas. Infelizmente não há razões para optimismo. Só há razões para optimismo quando as expectativas futuras são positivas em relação às experiências do presente. Ora, para a esmagadora maioria dos portugueses tais expectativas são negativas, e sê-lo-iam ainda mais se eles pudessem ver todas as implicações das mudanças económicas e legislativas em curso, as quais ameaçam inverter o processo de aproximação real à Europa dos últimos vinte anos.
O capitalismo europeu (ao contrário do norte-americano) depende da combinação de altos níveis de produtividade, assentes na inovação tecnológica, com altos níveis de protecção social, obtidos em sede de concertação social sob a égide do Estado-providência. A situação portuguesa afasta-se cada vez mais deste modelo. Porque não se investiu na educação, na formação profissional e na investigação científica e tecnológica, não foi possível alterar significativamente o padrão de especialização da nossa economia. Daí que tenhamos de continuar a competir com os países menos desenvolvidos, sobretudo com os que se preparam para entrar na UE. Sendo tarde de mais para a competição tecnológica, procura-se a competição legislativa. Daí a "urgência" do novo Código de Trabalho. Só que também é tarde de mais para a competição legislativa, dadas as grandes diferenças salariais entre os países em competição. Nenhuma alteração legislativa impedirá a deslocalização das empresas. A nova legislação traz prejuízos aos trabalhadores e nenhum benefício a médio prazo à economia portuguesa. Se não houver um dramático aumento de investimento científico e tecnológico, Portugal será insustentável, a médio prazo, enquanto país europeu.
Porque o modelo europeu está cada vez mais distante, substituiu-se a concertação social pela "auscultação" social. No caso do trabalho, tal substituição é talvez provisória e visa alterar as regras do jogo da futura concertação. Tal objectivo está presente na revisão da representatividade sindical para negociar convenções de trabalho. Tudo leva a crer que tal revisão, talhada à medida da UGT, reconfigure toda a negociação colectiva futura. Mas a suspensão da concertação ocorre mais gravosamente numa área onde surpreendentemente a contestação social é quase inexistente. Refiro-me à nova lei de bases da segurança social. Uma vez adoptada, a privatização parcial do sistema público de pensões, ao contrário das alterações na lei do trabalho, é irreversível. Experiências recentes de países tão díspares quanto o Chile, a Inglaterra e a Suíça, mostram que, em períodos de crise dos mercados financeiros, serão os cidadãos (ou o Estado) a assumir os custos da baixa das taxas de remuneração. Ou seja, as pensões em capitalização podem baixar ou, em casos extremos, desaparecer, de um mês para o outro. Com isto, a segurança da pensão de reforma transforma-se num risco social adicional.
É urgente que os portugueses se dêem conta deste risco. Perguntem-se se era necessária uma nova lei de Segurança Social dois anos depois de ser aprovada a anterior, regulamentada na base de um amplo consenso em sede de concertação social. Se não é estranho que Bagão Felix, que foi o "pai" da lei de bases de 1984, tenha tido tanta pressa em ser o pai da lei de 2002. Se a flexibilidade revelada pelo Ministro na revisão das leis do trabalho não estará relacionada com a sua determinação na aprovação da lei da segurança social. Se não há aqui uma agenda de reformismo conservador bem persistente. Perguntem-se, sobretudo, como podemos ser optimistas quando os direitos são restringidos, como podemos ter autoestima quando até as sandwiches nos comboios são espanholas.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos