Centro de Estudos Sociais
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01-05-2003        Visão
No passado dia 23 de Abril fiz uma palestra no Círculo de Belas Artes de Madrid, organizada para lançar a edição espanhola do meu livro "Crítica da Razão Indolente". A palestra foi integrada numa série de mini-colóquios sobre "Democracia ou Barbárie". O antropólogo Juan Aranzadi partilhou a mesa comigo. O debate entre nós foi vivo e fez-me pensar. Segundo os organizadores, o tema geral foi escolhido para propiciar uma análise dos desafios com que se confronta a democracia ante as novas hegemonias da guerra infinita e da globalização económica. Comecei por reflectir sobre as mudanças em curso nas ciências sociais enquanto instrumentos de diagnóstico do presente, e expus as minhas ideias sobre a globalização, um fenómeno velho-novo, complexo, que se, por um lado, é o rosto da arrogância do mercado frente às suas vítimas, o veículo mais eficaz da expansão planetária do capitalismo, por outro lado, cria novas oportunidades para a luta contra a exclusão social, ao tornar possível a articulação global entre movimentos e organizações sociais que lutam, em diferentes sociedades, pelos mesmos objectivos da construção de uma sociedade mais justa, solidária e multicultural. Concluí com a ideia de que só o aprofundamento da democracia a nível local, nacional e global pode pôr cobro à violência da fome e da guerra.
O meu parceiro de mesa criticou veementemente a minha posição por excessivamente optimista, mesmo tendo em conta a severidade do meu diagnóstico. Para sustentar a sua posição radicalmente pessimista e mesmo niilista, Aranzadi desenvolveu os seguintes argumentos: a modernidade ocidental tem sido uma máquina global de extermínio de populações (mais de 50 milhões de indígenas, e outros tantos escravos; entre 8 e 12 milhões de congoleses só no período em que o Congo foi propriedade particular do rei Leopoldo da Bélgica; 10 milhões no Gulag; 6 milhões no holocausto); o Ocidente só exportou a Bíblia e a sociedade de mercado, nunca a democracia; não é possível o multiculturalismo porque a cultura ocidental é um vírus que destrói as culturas com que contacta; a democracia ocidental não é alternativa à barbárie porque ela própria é barbárie; não há alternativa, não há esperança.
O debate foi intenso. Procurei mostrar: que o niilismo é apenas mais uma manifestação da arrogância capitalista ocidental; que a afirmação de que não há alternativa é um luxo a que se não podem dar muitos milhões de pessoas que lutam pela sobrevivência, contra a fome, a violência e a doença; que o "Ocidente" é algo demasiado complexo para se deixar captar numa visão monolítica; e que as certezas dos opressores foram ao longo da história muitas vezes desmentidas pelas lutas dos oprimidos. O que mais me impressionou foi saber que o meu comentador pertence a uma geração de cientistas sociais, caldeada em militância de esquerda e mesmo de extrema-esquerda, que entretanto se desencantou da política e que não quis ou não pôde transformar o desencanto numa nova energia rebelde e transformadora. Será este um sinal dos tempos? Será que a mercantilização obsessiva da vida, combinada com a inabarcável violência da guerra tecnológica, privatiza por dentro os cidadãos ao ponto de os fechar em casas de falsa consciência donde só se sai em dias de chuva para provar a si mesmo que nunca houve sol? Será que esta falsa consciência assume nos dias de hoje uma nova faceta ao radicalizar de tal maneira o inconformismo até ele se transmutar na fonte do que o inconforma? Será que caminhamos para uma sociedade em que a democracia e a barbárie se transformam em acessórios da consciência, demasiado portáteis para entenderem a vida e a morte?

 
 
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Boaventura de Sousa Santos