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08-05-2003        Visão
A sociedade portuguesa mudou muito nos últimos dez anos, mas muitas dessas mudanças só são notórias contra o pano de fundo de resistentes continuidades. Talvez por isso não haja consenso sobre o âmbito, o sentido e a intensidade das mudanças. Se para alguns foram demasiadas e demasiadamente rápidas, para outros, elas não conseguiram arrancar-nos dos atávicos imobilismos. Esta divergência de opiniões é normal em todas as sociedades que passam por processos semelhantes. Mas entre nós tem um significado próprio, e é sobre ele que me debruçarei.
Eis um elenco possível das principais mudanças sem ordem de precedência: aumento da imigração (depois de África, os países de Leste) com a correspondente alteração da estrutura social e cultural da população; emergência de movimentos sociais amplos e transversais, do apoio à independência de Timor Leste à defesa do meio ambiente e à luta contra a guerra; aumento das assimetrias regionais e intensificação do processo de metropolização territorial (Lisboa e Porto), mas, ao mesmo tempo, incremento da intensidade urbana (aumento da oferta de serviços e padrões de consumo) em pequenas e médias cidades; ascensão e queda da nova economia; explosão da micro-informática e dos telemóveis (em 1998 só os países escandinavos nos ultrapassavam); aumento da oferta do ensino superior; consolidação do sistema público de segurança social, entretanto posta em causa pelo actual governo; criação de um sistema nacional de ciência e de tecnologia; melhoria dos indicadores de pobreza com um decréscimo de 24% para 21% da taxa de pobreza relativa (percentagem da população residente com rendimento inferior a 60% da média do rendimento nacional); aumento da precarização do emprego (contratos a prazo e desestruturação das carreiras); aumento do desemprego de licenciados/as; incremento da discrepância entre rendimento e padrões de consumo, com o consequente e dramático aumento do endividamento das famílias; reforço do direito dos homens a gozarem de licenças para assistência aos filhos (licença de paternidade e licença parental); aumento importante da cultura como área de intervenção política do Estado e, sobretudo, das autarquias; incremento das indústrias culturais, da produção mediática e da publicidade, em parte ligado à privatização da televisão; informalização e desjudicialização da justiça e a introdução de novas tecnologias de informação e de comunicação no sistema judicial; emergência de novos (ou velhos, mas até agora não denunciados) tipos de criminalidade, do crime económico organizado às associações criminosas, corrupção, tráfico de drogas e de armas, pedofilia; aumento da participação das mulheres em muitas áreas da vida social (não política) e, nomeadamente, na administração da justiça; começo do fim da impunidade dos poderosos; aumento da distância entre os cidadãos e o sistema político com a subida da abstenção e a fraca participação nos referendos; incremento da mediatização da política; emergência e consolidação do Bloco de Esquerda; entrada da homossexualidade e dos direitos sexuais no discurso político.
A sociedade portuguesa é uma sociedade em movimento. Todas as sociedades são sociedades em movimento, mas entre nós essa constatação tem um significado específico que não tem noutras sociedades europeias. É que vivemos na presença de um tempo passado, mas recente, de imobilismo, de estagnação e, portanto, de decadência, contra o qual imaginamos estar a impor-se a presença rival de um tempo de ruptura e de mudança. Nas representações dos Portugueses, o tempo do imobilismo é o tempo do fascismo, Estado Novo, ditadura, Salazar, Cerejeira, PIDE, províncias ultramarinas, censura, União Nacional, guerra colonial, saudade, fado, futebol e Fátima, a Bem da Nação, censura, Marcelo Caetano, Movimento Nacional Feminino, brandos costumes, orgulhosamente sós, a aldeia mais portuguesa, agricultura camponesa, Deus, Pátria e Família, Mocidade Portuguesa, Angola é nossa, mulher-mãe-e-esposa, conversa em família, enxovais para os pobrezinhos, Abril em Portugal, povo que lavas no rio, cópia e ditado, criada de serviço, madrinhas de guerra. Por sua vez, o tempo de mudança é o tempo do 25 de Abril, liberdade, democracia, descolonização, partidos políticos, manifestações, União Europeia, Zeca Afonso, greves, coca-cola, escola nova, Mário Soares, gestão democrática, Xico Fininho, nacionalizações, privatizações, contratos a prazo, computadores, vídeos, telemóveis, mulher-operária-e-profissional, drogas, endividamento, Maria de Lurdes Pintasilgo, Expo 98, Siza Vieira, discotecas, turismo rural, Procuradoria Geral da República, Eduardo Lourenço, José Saramago, euro, rádios locais, internet, disk jockeys.
Estas duas presenças estão profundamente enraizadas no imaginário dos portugueses. E são ambas, em grande medida, ilusórias. Nem o tempo do salazarismo foi só de imobilismo, nem o tempo do 25 de Abril tem sido só de mudança. Se no primeiro tempo vivemos a mudança sob a forma do imobilismo, no segundo tempo vivemos o imobilismo sob a forma da mudança. Esta mudança nas formas vivenciais dos dois tempos é em si mesma significativa. No primeiro tempo, a mudança foi socialmente desvalorizada, ocorrendo subterrânea e anonimamente. Foi por isso que o 25 de Abril colheu de surpresa a grande maioria dos Portugueses. No segundo tempo, é o imobilismo que é socialmente desvalorizado, ao ponto de tornar-se inominável ou irrepresentável. A negação do imobilismo é também a negação da ruptura com ele. O facto de o 25 de Abril ser desvalorizado, ou mesmo estar ausente, em muitas das nossas escolas não significa que se desvalorize a ruptura com o imobilismo da sociedade anterior. Desvaloriza-se, isso sim, que a sociedade anterior alguma vez tenha existido de forma diferente e relevante para o que hoje somos.
Esta mudança de percepção e de perspectiva é, de facto, a mais significativa de todas porque é ela que condicionará o sentido e o modo como o futuro nos surpreenderá. Se no tempo do imobilismo foi o 25 de Abril que nos surpreendeu, o que nos surpreenderá no tempo de mudança? Algo que não será nem ruptura com o presente, nem trará algo de novo e melhor? Algo como um imobilismo assumido, o imobilismo que se afirma na manutenção desta mudança em que vivemos hoje? A surpresa estará em termos de concluir que, afinal, não saímos do lugar onde sempre estivemos, ou, pelo contrário, que o lugar em que estamos se desloca tão lentamente que nem como jangada de pedra percebemos o seu movimento?
Vivemos um entre-tempos, duas presenças rivais e, de facto, nenhuma delas suficientemente consistente ou convincente para desalojar a rival. E assim vamos viver por mais tempo. Esta vivência dividida divide também as lealdades, os critérios e os projectos, o que leva a que as clivagens entre os Portugueses não sejam nunca assumidas como muito vincadas. O que é mais significativo, que no espaço de dez anos tenhamos passado de conferências em prosa para conferências em power point ou de escrita em português para mensagens SMS em telemovês, ou, pelo contrário, que continuemos, como há séculos, a formar a mão-de-obra menos qualificada da Europa ou a premiar a ganância fácil em detrimento do trabalho e do investimento produtivos ou, como há décadas, que o nosso Estado (e, sobretudo, as nossas empresas) dediquem à investigação as percentagens do PIB mais baixas da Europa? É mais significativo que a diversidade religiosa tenha aumentado expressivamente nos últimos dez anos ou que a Igreja católica portuguesa continue, como há séculos, conservadora e "instrumento do reino" (sob a sua égide entra um neoliberalismo baptizado com a reforma da segurança social e novo código do trabalho)? É mais significativo que tenhamos passado de um país de emigrantes a um país de imigrantes ou que continuemos a ter os salários mais baixos da Europa? Não há consenso entre os que pensam que as mudanças acabarão por arrastar consigo as continuidades e aqueles que pensam que as continuidades acabarão por boicotar ou tornar irrelevantes as mudanças. Mas este discurso não potencia, ao contrário do que seria de pensar, a emergência de clivagens políticas ou culturais fortes. É que nenhum português está do lado da valorização da mudança ou da continuidade em todas as áreas da vida social. Se nalgumas áreas valoriza a mudança, noutras valoriza a continuidade. E como quer as mudanças, quer as continuidades podem ter, na grande maioria dos casos, aspectos positivos e aspectos negativos, alguns valorizam-nas pelo que têm de negativo, enquanto outros as valorizam pelo que têm de positivo.
Este entrecruzar de percepções de mudança e percepções de imobilismo e de valorização, ora positivas, ora negativas, do que muda e do que permanece, faz com que em Portugal seja difícil formar blocos sociais e políticos que promovam projectos inequívocos e coerentes de transformação social (ou de recusa dela). Daí que as forças de esquerda não se identifiquem entre si senão pelo que as divide; daí que não haja entre nós um forte partido de extrema-direita; daí que entre a esquerda "responsável" e a direita "responsável" haja, sobretudo, em comum a mesma falta de sentimento de responsabilidade por um projecto político, social, económico e cultural coerente e inequívoco. Politicamente, em Portugal o centrismo prospera, não como projecto, mas como ausência de projecto. E a ausência de projecto, por tão reiterada pelo hábito, passa facilmente por projecto alternativo a si mesma.
Esta ausência de projecto feita projecto tem hoje uma versão particular que se vincou muito nos últimos dez anos. Essa versão é a União Europeia. Na aparência, a União Europeia representa o fim da multissecular ausência de projecto. Finalmente, somos parte de um verdadeiro projecto que excede em muitos aspectos o nosso presente, que tem objectivos claros e dispõe de um plano, métodos e estratégias para os atingir. É, além disso, um projecto hegemónico, ou seja, um projecto que concita entre nós o mais generalizado consenso, sendo legítimo ver nele a verdadeira razão da despolarização na sociedade portuguesa. Atrevo-me, no entanto, a pensar que o projecto europeu, pelo menos até agora, é mais uma versão da ausência de projecto. Sem dúvida que a entrada na União Europeia transformou profundamente a sociedade portuguesa e, na esmagadora maioria dos casos, tratou-se de uma transformação positiva, para melhor. Penso, no entanto, que até agora (repito) essas transformações são menos assumidas como parte de um projecto que adoptámos com peso e medida do que como resultado auspicioso de novas rotinas que nos aconteceram. Estamos no projecto europeu, mas ainda não somos o projecto europeu. Tal como estivemos nas colónias sem sermos colonizadores efectivos. Tal como então, estamos no lugar fora do lugar. Esta continuidade está bem expressa no aventureirismo que caracteriza o modo como temos utilizado os fundos estruturais e de coesão em muitos aspectos semelhante ao aventureirismo que caracterizou o modo como explorámos as colónias. Nestas fomos quase sempre aventureiros e poucas vezes colonos. Explorámos com insaciável avidez a riqueza fácil e à mão, mas raramente nos instalámos para, com trabalho e tecnologia, valorizar os recursos locais e multiplicá-los em projectos de desenvolvimento sustentável, como hoje se diria. É por isso que, enquanto na América Espanhola se fundaram 23 universidades entre o séc. XVI e o séc. XIX, as colónias portuguesas tiveram de esperar pelo séc. XIX, ou mesmo pela segunda metade do séc. XX (no caso de África) para inaugurarem as suas universidades. No caso dos fundos estruturais e de coesão, deixámos que eles se tornassem presa fácil de corrupção impune, enterrando-os em cimento e betão em vez de os pôr ao serviço da viragem educativa e científico-tecnológica, a viragem que nos permitiria apropriarmo-nos do projecto europeu como verdadeiramente nosso. Estamos, pois, nele mas, por enquanto, a partir de fora. Mais como hóspedes do que como anfitriões. Até agora, a entrada na União Europeia é mais uma versão da ausência-de-projecto-feita-projecto-de-si-mesma.
Por estas razões, a ausência-de-projecto-feita-projecto-de-si-mesma é o que melhor caracteriza o entre-tempo presente. Ela tem de facto uma enorme plasticidade que lhe permite transfigurar-se simultaneamente em imobilismo e em mudança. As suas duas transfigurações, aparentemente opostas, são o realismo e o quixotismo. O realismo é, entre nós, uma atitude de renúncia a mudar a realidade. A mudança da realidade exige um projecto; não havendo projecto, a rotina é o melhor seguro contra o futuro incerto. A rotina é o governo do conhecido pelo conhecido. É a força de quem não tem força, ou, tendo-a, não sabe que a tem ou acha desperdício ou perigoso exercê-la. Na rotina é-se contra o método, o rigor e a previdência em nome da facilidade, do comedimento e do bom senso naturais do deixar correr. Aubrey Bell escrevia no início do séc. XX que a outra palavra tipicamente portuguesa, além da saudade, era "desleixo", a qual, em seu entender, implicava menos a falta de energia do que a íntima convicção de que "não vale a pena…" Este realismo pedestre é uma das mais longas durações da nossa existência colectiva e é talvez mais lucidamente observável a partir daqueles que colonizámos. Diz Sérgio Buarque de Holanda nas Raízes do Brasil: " a rotina e não a razão abstracta foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões da sua actividade colonizadora. Preferiram agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até ao fim. Raros os estabelecimentos fundados por eles no Brasil que não tenham mudado uma, duas ou mais vezes de sítio, e a presença clássica da vila velha ao lado de certos centros urbanos de origem colonial é persistente testemunho dessa atitude tateante e perdulária".
O realismo pedestre está sempre a um passo de se converter em perda de auto-estima. As rotinas são o imobilismo em movimento, e qualquer mudança que aflore da sua ruminação subterrânea tende a provocar surpresa. Não havendo plano, diagnóstico ou desígnio, há surpresas, isto é, consequências em busca de causas. Como foi possível o 25 de Abril? Como foi possível o desastre da equipa portuguesa no campeonato do mundo de Seul? Como é possível que o bar do combóio entre Lisboa e Porto sirva sanduíches espanholas? De algum modo, nem merecemos o que nos acontece de bom, nem o que nos acontece de mau. Nisto consiste a fragilidade da nossa auto-estima, aquilo a que tenho chamado o luso-merdismo, o desfocar das expectativas, tanto negativas como positivas. É por isso que é tão forte, entre nós, o discurso do "bota abaixo" como o discurso do "basta de bota abaixo".
Mas a ausência-de-projecto-feita-projecto-de-si-mesma manifesta-se sob outra forma, o quixotismo. O quixotismo é o realismo pedestre quando monta a cavalo. A ausência de plano, método ou razões abstractas, torna possíveis as fulgurações. As fulgurações são a interrupção das rotinas, sem peso nem medida, e traduzem-se em intervenções mal calibradas, contrafactuais. Tivemos recentemente duas manifestações eloquentes de quixotismo. A primeira consistiu na monocultura política do controlo do défice orçamental. Em vista da fragilidade da nossa economia e da conjuntura internacional, tal política foi uma afirmação quixotesca de lealdade exagerada e desfocada ao projecto europeu, uma lealdade que seria ridícula se em vez de hóspedes fossemos anfitriões neste projecto. O resultado é a recessão económica, o crescimento negativo do PIB (único na Europa), retrocesso na convergência (os piores dias que virão com o alargamento da União Europeia) e o golpe de Estado financeiro que o Estado central acaba de infligir às autarquias. A segunda manifestação de quixotismo foi o apoio entusiasta do Primeiro Ministro à invasão do Iraque, contra a posição do núcleo duro da UE, o eixo França-Alemanha. Aqui, a lealdade peca por defeito e mostra igualmente em que medida o projecto europeu nos é exterior. Um país pequeno, com problemas de convergência, se levasse a sério o projecto europeu e o tivesse como seu, teria todo o interesse em alinhar-se pelo núcleo duro da Europa e ainda para mais apoiado pela opinião pública. Sucedeu o contrário porque Portugal, inconformado com a sua pedestrialidade, decidiu cavalgar um projecto mais amplo do que a União Europeia, a União Atlântica. Como se, para nos vingarmos de a Europa ser grande de mais para o Portugal dos Pequenitos, quiséssemos mostrar que Portugal é grande de mais para a Europa dos Pequenitos. Sem força para tamanha cavalgada, terminámos nas margens de ambos, metaforicamente nos Açores. Perdemos a alma, mas ganhámos umas subempreitadas.
No momento em que se aperta o cerco à sociedade portuguesa, no momento em que a economia portuguesa, em processo de espanholização dependente, não parece preparada para enfrentar o desafio europeu, no momento em que nos evidenciámos como hóspedes, não apenas relutantes, mas também ingratos da UE, neste momento a ausência-de-projecto-feita-projecto-de-si-mesma torna-se insuportável. Não é suportável que a mudança não continue a ser possível senão ao ritmo do imobilismo. Não é suportável que continuemos a inculcar nos nossos jovens os escapes alternativos do realismo chão e desistente e do quixotismo aéreo e inconsequente, ou alternativas do bota abaixo/basta de bota abaixo. Há trinta anos vivemos um momento limite deste bloqueio em movimento, simbolizado na figura de Marcelo Caetano e retratado brilhantemente num livro notável de Vasco Pulido Valente (Marcelo Caetano, As Desventuras da Razão, Gótica, 2002). Trinta anos depois não precisamos de um outro 25 de Abril porque o que temos não está esgotado. E não está esgotado porque é inesgotável a expectativa democrática que nos inculcou. Com o 25 de Abril aconteceu-nos a democracia, mas até agora não nos demos conta da enorme exigência que ela nos faz se levada a sério, no parlamento como no governo, nos tribunais como nas polícias, nas escolas como nos hospitais, nas comunidades como nas empresas, na rua como em casa. É por isso que a ausência de projecto tem passado por projecto, um projecto que, para ser nacional, tem de ser europeu e, para ser europeu, tem de incluir os países de língua oficial portuguesa.
Mas o bloqueio em movimento, sendo recorrente na nossa história, não é uma necessidade histórica. Nos últimos dez anos tivemos exemplos de boas práticas que, se continuadas e emuladas, permitiriam romper o bloqueio. Dou o exemplo da prática que, desta perspectiva, considero mais consequente neste período: a política científica de Mariano Gago. O seu incontestável êxito assentou nas seguintes premissas: assumir com lealdade e sem reservas o projecto europeu; com trabalho e dedicação, conhecer intimamente os dossiers comunitários, os da nossa comunidade científica e os dos outros países comunitários; com tenacidade e imaginação, maximizar a nossa capacidade de manobra e o respeito pelas nossas especificidades, usando como critério de orientação o espírito do quadro jurídico comunitário e não a sua letra; na frente interna, lutar contra o luso-merdismo - promovendo a auto-estima sem quixotismo -, ampliar as alianças na comunidade científica - conferindo cidadania às ciências sociais e humanas sem o fazer contra a incontestada cidadania das ciências naturais -, criar, com fortes investimentos em infra-estruturas e recursos humanos, um sistema coerente de ciência e tecnologia e, acima de tudo, criar um clima hegemónico, de consensos mobilizadores. Em resultado desta política, Portugal foi, entre 1996 e 2002, o país da Europa com maior crescimento na grande maioria dos indicadores de ciência e tecnologia. Se aplicada, com as devidas adaptações, noutras áreas de governação, esta política desbloquearia em poucos anos o país e pô-lo-ia em verdadeiro movimento, com peso e medida.
Não há que optar entre imobilismo e mudança; há que interpretar de modo não tradicional a tradição para abrir o caminho à inovação consistente. Não há que tentar sínteses entre o quixotismo de Os Lusíadas e o realismo de O Soldado Prático de Diogo do Couto. Essas só são possíveis na literatura e a mais brilhante de todas é a de Fernando Pessoa. Mas se Portugal não é apenas uma questão de literatura, é urgente esquecer Fernando Pessoa em nome de Fernando Pessoa.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos