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27-03-2017        Público

É imperioso lutar contra o enfraquecimento da memória, contra a inversão do processo da (re)construção da sociedade. Seremos ainda capazes?

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Suzanne Daveau, num seu texto a propósito da comemoração dos 230 anos das relações luso-marroquinas, cita o geógrafo Al-Idrisi, que descrevia para o Rei da Sicília o mundo até então conhecido: “Oceano Tenebroso donde procede o Mar de Síria (o Mediterrâneo)” e “os aventureiros de Lisboa que atingiram no oceano ilhas povoadas e chegaram finalmente a Safim” [1]. Ora é sobre a cidade de Safim, na costa litoral de Marrocos, que nos focamos. Um dos torreões do Castelo do Mar, desenhado e edificado por Diogo e Francisco de Arruda em 1512 na cidade de Safi, ruiu no início da semana passada. Estrutura militar do início do século XVI, faz parte de um tecido urbano de que se destacam a cintura amuralhada, o Castelo da Terra (Kechla), parte da Catedral mandada construir por D. Manuel, a mesquita almóada, inúmeros marabouts e a Medina, que fazem desta cidade de rara beleza e pendente topográfica sobre o Atlântico um espelho das culturas do Mediterrâneo, onde ainda hoje coabitam as culturas árabes, judaica e cristã.

Este conjunto ainda de integridade morfológica e tipológica na relação com a cidade foi agora decapitado numa das suas zonas mais nobres, a relação com o mar. Decapitado pela erosão da natureza, mas também pela incúria do poder e das suas várias instituições. O Castelo, já fechado ao público há alguns anos, é um ex-líbris da arquitectura militar, dotado de cisterna, baluartes de forma distinta, praça de armas, marabout, e era para os safiotas o símbolo da cidade. Mas com certeza que este símbolo identitário constitui também um legado da cultura portuguesa, da sua arte arquitectónica e de engenharia. Como Françoise Choay escreveu no seu ensaio Património e Mundialização: É possível devolver vida aos patrimónios antigos e ao mesmo tempo, recuperar a competência de produzir novos patrimónios para as gerações futuras?”

Neste âmbito, a Cátedra UNESCO da Universidade de Évora tem vindo a trabalhar nos últimos anos com a comunidade safiota, com várias instituições académicas e com as autoridades locais, no sentido de sensibilizar e de criar dinâmicas que promovam a defesa do património de Safi, tendo apresentado em finais de 2016 ao Conselho Regional de Marraquexe-Safi um plano de oito acções, e propostas para a elaboração de uma avaliação de consolidação da falésia onde assenta o castelo e para a realização de um plano de salvaguarda arquitectónica e urbanística da Medina. As intenções e a investigação esbarraram também na bruma das indecisões políticas; mas Portugal não teria também uma palavra a dizer? O documento do Governo Português, Programa Acção Cultural Externa 2017, refere que um dos objectivos da política pública “é a promoção internacional da Cultura e língua portuguesas”, o que implicaria também, deduzimos, uma acção de salvaguarda dessa mesma cultura.

Curiosamente, por outro lado, verifica-se uma variedade de exposições de índole histórica produzidas sobre o período da expansão portuguesa. Nesse contexto poderíamos destacar a exposição Encompassing the Globe: Portugal and the World in the 16th and 17th Centuries, no Smithsonian Institute em Washington (2007) e depois no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa (2009), ou a exposição a inaugurar em Dezembro deste ano nos Museus do Kremlin em Moscovo, sobre Tesouros do Império Português nos séculos XVI a XVIII, Lords of the Ocean. Treasures of the Portuguese Empire in the 16th-18th Centuries, como exemplos de que o legado patrimonial português continua vivo e necessário para a contínua interpretação da história e igualmente como contributo para a “economia da cultura”. Como Choay refere, é imperioso lutar contra o enfraquecimento da memória, contra a inversão do processo da (re)construção da sociedade. Seremos ainda capazes?


[1] Revista Camões. Nº 17/18, Novembro, 2004.


 



 
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