Centro de Estudos Sociais
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04-09-2003        Visão
Há países que, em certo momento histórico, assumem um protagonismo surpreendente. Nos tempos que correm são países que, pelos indicadores económicos e sociais usados pelas agências internacionais para medir o "nível de desenvolvimento", são pobres, atrasados, dependentes da ajuda externa, a contas com pandemias e com baixíssima esperança de vida. São, em suma, países à espera da ajuda da humanidade e donde a humanidade nada pode esperar. É neste contexto que surge a surpresa de um protagonismo cujo âmbito extravasa as fronteiras do país.
É este o caso de Moçambique. É moçambicano um dos maiores escritores vivos de língua portuguesa, Mia Couto, e foi neste país que se produziram cinco das cem melhores obras literárias africanas do século XX. Um cientista social moçambicano, de renome internacional, José Negrão, ganhou recentemente o prémio African Leader pelo seu notável desempenho na preparação e divulgação da importante Lei de Terras. O Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, acaba de encomendar a um arquitecto moçambicano, José Forjaz, o projecto da sua casa em Accra, no Gana. É o reconhecimento mundial da obra do arquitecto e urbanista que, em meu entender, melhor sabe universalizar os valores de África. É moçambicana uma das melhores atletas do mundo, Lurdes Mutola. E, muito em especial, saliento o prémio internacional que acaba de ser concedido ao Juiz Augusto Paulino pelo Media Institute of Southern Africa pelo modo exemplar como conduziu o julgamento dos assassinos do jornalista Carlos Cardoso, transformando o julgamento num imenso exercício pedagógico de justiça independente, transparência e democracia e sabendo conciliar, como tão raramente ocorre, os interesses da justiça com os interesses da comunicação social.
São estes, entre outros, os factores que hoje nos permitem falar de um desafio moçambicano. O desafio consiste em que o que hoje acontece em Moçambique é relevante, para o melhor e para o pior, não apenas para o país mas também para o mundo inteiro. O desafio transforma-se assim numa responsabilidade acrescida para este povo, suas elites e suas instituições. Tal responsabilidade será submetida a múltiplos testes nos próximos tempos. Um deles está em curso e os augúrios não são auspiciosos. Ocorre na área da justiça. Trata-se do julgamento dos sete polícias que terão facilitado a fuga da prisão de um dos assassinos de Carlos Cardoso, o Anibalzinho. Se a justiça moçambicana se dignificou com a actuação do Juiz Paulino, pode agora estar a ser conspurcada pela actuação do procurador que conduziu a instrução do processo e, portanto, da Procuradoria Geral da República por ele responsável. São tão clamorosas as deficiências da acusação que é geral a suspeita de que houve a intenção de encobrir os mandantes da fuga, os quais terão sido eventualmente os mesmos que mandaram matar Carlos Cardoso. O envolvimento do filho do Presidente Chissano é referido diariamente na imprensa sem que este, intrigantemente, apresente queixa por crime de difamação.
A actuação da acusação pública está tão abaixo dos critérios mínimos de profissionalismo que só é explicável (não justificável) pela sua incapacidade de resistir a fortes pressões externas. Com isto desbarata-se o capital de confiança que a justiça moçambicana granjeou com o julgamento do caso Carlos Cardoso. Corre-se o risco de transformar a reforma judicial actualmente em curso num exercício inútil ou ainda pior, numa fachada para ocultar a miséria de uma justiça corrupta ao serviço de um poder político corrupto.
Se se provar que os poderosos estão acima da lei, o desafio moçambicano deixar-nos-á mais reduzidos à mediocridade e à iniquidade do mundo.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos