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27-11-2003        Visão
Depois de mais de vinte anos de intensificação da globalização, começa a emergir uma nova forma de senso comum que poderíamos designar por consciência do mundo.
Trata-se da representação popular de que, além de vivermos em nossas casas, cidades e países, vivemos também no mundo. Até há pouco, a expressão viver no mundo não tinha qualquer conteúdo. Significava tão-só estar vivo. A substância do que significa viver residia em escalas muito mais reduzidas, e era ao nível delas que dávamos sentido à nossa vida, enquanto membros de famílias e associações, cidadãos, membros de comunidades ou grupos étnicos. Hoje, a escala do mundo começa a ter uma consistência própria nas nossas experiências de vida. O mundo entra hoje na vida das pessoas de múltiplas formas: quando vêem ou ouvem notícias, vão às compras, são despedidas ou morrem de fome ou de doença. E, o que é verdadeiramente novo, isso acontece em praticamente todo o mundo. Cada vez mais o que acontece no mundo afecta-nos pessoalmente. E como o mundo é uma escala de consciência muito vasta e as desigualdades que o compõem cada vez maiores, a consciência que se tem dele é ambígua e mesmo contraditória, dependendo não só do lado do mundo em que vivemos, como também da natureza dos acontecimentos que nos dão, ora sinais de esperança, ora de desastre iminente.
A última semana contribuiu como poucas para aprofundar a nossa consciência do mundo e para vincar as contradições que o habitam. Do lado do desastre, a violência política na Turquia é um factor novo na consciência do mundo, sobretudo dos povos do Médio Oriente e da Europa. Para os povos do Médio Oriente, significa que as suas vidas vão ser cada vez mais afectadas pelo acto imperial e ilegal da invasão do Iraque. A instabilidade aumentou em vez de diminuir, como prometiam os invasores, e vai alastrar a outros países da região. Para os povos europeus são cada vez mais claros a miopia, o preconceito e mesmo a má fé com que a União Europeia tem tratado a questão da Turquia. O governo turco, moderado e de raízes islâmicas, à medida que vai cumprindo as condições para adesão à UE, é confrontado com novas condições, a última das quais é a resolução do caso de Chipre. Se a UE quer ser um factor de estabilidade no mundo, deverá aproximar as suas fronteiras ao Médio Oriente, desta vez a convite do governo turco, e não a ferro e fogo, como aconteceu com as cruzadas.
Do lado da esperança, a semana passada entrou na consciência do mundo, sobretudo dos europeus e dos latino-americanos. Dos europeus, porque depois do êxito do Fórum Social Europeu, foi possível mostrar nas ruas de Londres, nos protestos contra a visita de Bush, que a paz continua a ser mobilizadora apesar da intoxicação belicista dos media conservadores (editoriais semelhantes a favor da guerra foram publicados nos 175 jornais controlados por Rupert Murdock). E também se mostrou que não é hoje possível uma relação simétrica com os EUA, pois nem o apoio incondicional de Blair a Bush conseguiu extrair deste alguma concessão (e.g. direito internacional em Guatanamo). Para os latino-americanos e para o mundo em geral, a esperança veio do fracasso da reunião de Miami da projectada Área de Livre Comércio das Américas. A actuação brilhante da diplomacia brasileira permitiu inculcar na consciência do mundo dois factos cruciais: o livre comércio só é aceitável quando deixar de ser o mecanismo de submissão dos países menos desenvolvidos aos mais desenvolvidos; entre os direitos de patentes que geram lucros fabulosos para as empresas farmacêuticas e a vida dos muitos milhões afectados pelo HIV-Sida e por outras pandemias, não resta outra opção digna do mundo senão a de salvar vidas.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos