Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
12-02-2004        Visão
O relatório de Lord Hutton, exonerando o Governo de Tony Blair de qualquer manipulação dos dados dos serviços secretos para justificar a invasão do Iraque, e as comissões de inquérito que acabam de ser criadas nos EUA e na Inglaterra para averiguar se os serviços secretos induziram em erro os governos destes países na opção pela guerra, são reveladores dos riscos que corre a democracia nestas duas grandes pátrias da democracia e, por implicação, no resto do mundo, dado o impacto do unilateralismo dos EUA nas relações internacionais pós-11 de Setembro. Nunca, em democracia, a aparência se pretendeu sobrepor tanto à realidade e nunca a disfarçou tão mal. Nunca os interesses de sectores restritos encastrados no poder se impuseram de modo tão ignóbil aos interesses das maiorias dos seus países e das dos países que transformaram em alvos. Nunca tal imposição se serviu tanto da grande comunicação social para transformar a voracidade dos poderosos em desígnios nacionais e missões civilizatórias. Nunca a grande comunicação social traiu com tanto despudor o ideal republicano da opinião pública, assente no acesso livre à informação diversificada e no debate racional sobre ela. Nunca, finalmente, tudo isto foi (e continua a ser) feito em democracia com tanta impunidade, com os governantes a saírem ilesos dos desastres que provocaram, e os jornalistas e comentadores a serem confirmados por sobre o magma das contradições dos seus editoriais e comentários.
À data da invasão do Iraque, em 20 de Março de 2003, sabia-se o seguinte. Mais de dez anos de embargo incapacitaram o Iraque para a produção de armas de destruição maciça. Nestas há que distinguir entre armas nucleares e armas químicas e biológicas. As primeiras são de fabricação complexa e o Iraque só as poderia obter por compra, por exemplo, à Rússia, uma hipótese altamente improvável. As segundas são feitas com materiais acessíveis e virtualmente todos os países as podem produzir, pelo que não é aceitável invadir qualquer país que as tenha, até porque a invasão pode desencadear o seu uso. Os serviços secretos dos EUA e da Inglaterra, em sucessivos relatórios, levantaram dúvidas à ideia de "ameaça iminente". Em face disso, os neoconservadores instalados no Pentágono criaram uma estrutura paralela, o Office of Special Plans, para fazer curto-circuito das verificações normais da informação e dar credibilidade a fontes, em geral, desacreditadas (os exilados do Iraque). Ainda no tempo de Clinton esses mesmos conservadores tinham enviado um relatório ao Presidente recomendando a invasão do Iraque para fortalecer o controle dos EUA numa área problemática e garantir o acesso à segunda maior reserva de petróleo do mundo (podendo assim desarticular a OPEP), sem que as armas de destruição maciça (ADM) tivessem alguma importância nesse plano.
Logo que a guerra "terminou", mostrou-se que eram falsas as provas da presença de ADM apresentadas na ONU por Colin Powel em 5 de Fevereiro de 2003. Por outro lado, a desclassificação, depois da guerra, do documento apresentado pelo Director da CIA para justificar a invasão do Iraque revelou que o documento continha 40 cláusulas de reserva, incluindo 15 vezes o uso do advérbio "provavelmente", que foram eliminados da versão anteriormente publicada. A invasão do Iraque foi, pois, um objectivo premeditado, que apenas recorreu a uma justificação falsa por não poder usar a verdadeira. Não houve engano. Ou melhor, não foram os governantes que foram enganados pelos serviços secretos, foram os cidadãos que foram enganados pelos governantes. No solo estão milhares de mortos, na grande maioria civis inocentes, um país destruído à mercê dos fanáticos, e um precioso património cultural da humanidade pilhado ou reduzido a cacos. As armas de manipulação maciça utilizadas nesta operação macabra são a grande ameaça à paz e à democracia nos tempos mais próximos.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos