Centro de Estudos Sociais
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20-05-2004        Visão
A estupefacção e a indignação mundiais ante as imagens e relatórios sobre as torturas praticadas pela polícia militar norte-americana na prisão de Abu Graib são plenamente justificadas mas não devem dispensar-nos de reflectir sobre as causas profundas do que se passou, sobretudo porque o que se sabe do que se passou é a ponta do iceberg do que se está a passar e, muito provavelmente, continuará a passar. Eis algumas das causas.
1. Guerra total. Os nazis alemães desenvolveram pela primeira vez o conceito de "guerra total" para justificar todas as violações do direito internacional contra militares e populações civis dos países inimigos e contra os judeus e os ciganos alemães e não alemães. As Convenções de Genebra de 1949 visaram varrer da história este conceito ignominioso. Não o conseguiram, porém. Foi ressuscitado pelos Israelitas, com Ariel Sharon e o seu projecto de extermínio dos palestinianos, e pelos EUA depois do 11 de Setembro. A violação das Convenções de Genebra foi superiormente aprovada pelo Departamento de Defesa (DDD), nomeadamente no que respeita à aplicação das técnicas mais agressivas da "matriz de stress" para obter informações dos detidos. Em Guantanamo há "combatentes ilegais" privados dos direitos mais elementares e sujeitos às mesmas torturas que os iraquianos porque se está em "guerra total". Sabe-se que um grupo secreto do DDD viaja pelo mundo, à margem das leis nacionais e internacionais, para raptar suspeitos onde quer que estejam e levá-los para centros de detenção secretos. Para além de Guantanamo, há vários outros espalhados pelo mundo. Também porque a guerra é total nunca saberemos quantos milhares de civis iraquianos foram mortos nos últimos meses.
2. Racismo. O racismo é inerente ao Ocidente moderno. Teve no colonialismo a sua máxima expressão política mas impregnou de tal maneira a mentalidade, tanto dos colonizadores como dos colonizados, que continua hoje a vigorar apesar de o colonialismo clássico já ter terminado. As raças e as etnias consideradas inferiores não são consideradas plenamente humanas e, por isso, não há que tratá-las como se fossem. O tratamento sub-humano é o único meio eficaz de obter informações de sub-humanos.
3. Orientalismo. Consiste num conjunto de crenças desenvolvidas no séc. XIX a respeito da superioridade da cultura ocidental face à cultura oriental, nomeadamente islâmica, considerada estagnada, inimiga do progresso, fundamentalista e, como tal, uma ameaça à normal expansão da cultura ocidental. A profanação dos lugares sagrados e a pilhagem cultural, tal como a humilhação dos detidos, centrada na sua identidade cultural e religiosa, têm a seu favor a justificação da historia: contribuem afinal para acelerar o triunfo da cultura ocidental.
4. O inimigo íntimo. O inimigo estrangeiro tem sempre um duplo, nacional, e o tratamento que ele merece não é melhor que o que é dado a este último. Alguns dos torturadores são na vida civil guardas prisionais habituados à rotina dos maus tratos e da violência racista contra presos, na esmagadora maioria negros e jovens, muitos deles (em assustadora percentagem) a cumprir prisão perpétua por crimes que, por vezes, não vão além da prática repetida de pequenos furtos em supermercados. Mas o inimigo mais íntimo do torturador é o que está dentro dele próprio. A cultura dos EUA vive obcecada pelo medo da desintegração pessoal e colectiva provocada pelo desejo sexual, o qual, para ser contido, tem de ser mantido dentro de estritos limites de "normalidade" para além dos quais só existe perversão. As sevícias sexuais contra os detidos são uma ocasião única para exercer a perversão e simultaneamente negá-la pela normalidade da guerra total, do racismo e do orientalismo em que ela se insere.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos