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17-06-2004        Visão
Por toda a Europa os resultados das eleições para o parlamento europeu revelam o que há de mais perturbador no processo de construção europeia: é um processo assente em negociações entre governos feitas à margem dos cidadãos. Os cidadãos, chamados a votar, respondem de modo transparente, não votando ou votando a pensar nos seus governos nacionais, em geral punindo-os pelas políticas económicas e sociais que causam desemprego, diminuição dos salários reais, deterioração das políticas de saúde e de educação, aumento das desigualdades sociais e asfixia das classes médias. Isto não impede que, aqui e acolá, os eleitores se mobilizem por questões especificamente europeias. Foi o que sucedeu em Inglaterra e na Holanda, onde partidos ou movimentos com uma agenda especificamente europeia e, por sinal, eurocéptica granjearam o interesse dos eleitores. Mas, em geral, se houve alguma interferência da europeidade nas decisões dos eleitores, ela actuou para vincar a punição pelas políticas nacionais. Os casos de Portugal, Inglaterra (também nas eleições autárquicas) e Itália ilustram bem como à punição eleitoral pelas políticas económicas e sociais se somou a punição pelo alinhamento com Bush e a sua invasão ilegal do Iraque, um alinhamento visto pelos cidadãos como uma traição à única causa em que eles sentiram, em tempos recentes, como europeus, a causa da luta contra a guerra. O caso de Portugal é particularmente significativo a este respeito. Entre os governos europeus, o governo PSD-CDS foi um dos mais duramente derrotados devido a esta conjunção de punições eleitorais. Não duvido que as questões de política interna tivessem dominado as opções dos eleitores, mas estou certo de que também contou a repulsa por uma decisão anti-europeia, donde Portugal não poderia tirar nenhum proveito (ao contrário da Inglaterra ou da Espanha) e que não terá tido outra justificação senão as idiossincrasias de um primeiro-ministro treinado nos EUA em relações internacionais para não ver nestas senão o que os EUA vêem.
As eleições europeias são uma "coisa" política ainda mal identificada. É um voto mais expressivo que instrumental uma vez que nele não funciona o voto útil. É um voto de eficácia deslocada porque esta não reside, tanto em quem elege ou deixa de eleger para o parlamento europeu, mas na mensagem que transmite a governos nacionais que não dependem do parlamento europeu para nada. É um voto-sinal propício à manifestação de fenómenos emergentes. E, também neste caso, o nosso país é significativo por via do bom desempenho eleitoral do Bloco de Esquerda que, não só elegeu Miguel Portas, como aumentou em termos absolutos o número de votantes em relação a eleições anteriores. E note-se que o BE se jogou inteiramente no campo das políticas nacionais, já que a sua campanha foi dominada por estas e não pelas políticas europeias, tal como, de resto, aconteceu com os outros partidos. O BE é um facto político novo no nosso panorama político e as eleições vincaram-no eloquentemente. Essa novidade reside em ser um partido de alternativas que, no entanto, não se deixa marginalizar numa contra-cultura política alternativa. Por isso, os seus eleitores já não são apenas os jovens suficientemente políticos para votarem contra a política, ou os cidadãos que só se mobilizam por reivindicações culturais ou de estilo de vida. Votam no BE crescentemente cidadãos preocupados com o desemprego, a educação e a saúde, isto é, com as questões económicas e sociais. Com isto só se sentirão ameaçados os partidos atados aos dogmas da velha esquerda. Para mim, o voto-sinal mais inequívoco destas eleições é a possibilidade muito real de uma nova coligação de uma nova esquerda.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos