Centro de Estudos Sociais
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09-06-2005        Visão
As democracias ocidentais têm-se debatido desde o início da década de setenta com manifestações de mal-estar político que, conforme os quadrantes políticos, têm sido interpretadas como crises de legitimidade ou como crises de governabilidade. No seguimento dos protestos sociais dos movimentos estudantis (Maio de 1968), a interpretação dominante foi a de crise de legitimidade. Legitimidade é a qualidade de um sistema político que governa basicamente por consenso. A crise de legitimidade resultou do facto de, para vastos sectores da sociedade (estudantes, trabalhadores, mulheres, estrangeiros, idosos, deficientes, etc.), a democracia não ter cumprido as suas promessas de garantir a igualdade real dos cidadãos e a protecção dos mais vulneráveis. Em suma, o sistema político era demasiadamente pouco democrático para merecer o consenso dos cidadãos.
Pouco anos depois, em 1975, a Comissão Trilateral – um think tank ligado aos interesses hegemónicos dos EUA e do capitalismo global – fez um diagnóstico alternativo da situação política. Segundo ela, o problema não era a falta de democracia, mas, pelo contrário, excesso de democracia. Desde os anos cinquenta, grupos sociais cada vez mais numerosos tinham vindo a reivindicar do Estado cada vez mais direitos sociais. Com isto, tinham vindo a sobrecarregar em demasia os sistemas democráticos, a ponto de as sociedades se tornarem ingovernáveis. A crise não era, pois, de legitimidade mas antes de governabilidade e a sua superação implicava a redução dos direitos, a diminuição do peso do Estado e o reforço do mercado na regulação social. Dez anos depois, o Consenso de Washington consagrou este diagnóstico e tomou-o como base do que hoje chamamos globalização neoliberal.
As vicissitudes por que está a passar o Tratado para a Constituição Europeia (CE) não são explicáveis sem ter em conta esta história recente. O diagnóstico que presidiu à decisão de elaborar uma Constituição e de a elaborar segundo o método adoptado assentou na ideia da crise da governabilidade. Sobretudo depois do último alargamento, seriam demasiados os países a reivindicar participação igualitária e demasiados os cidadãos a exigir o direito ao modelo social europeu. Sem uma mudança no sistema de governo e nas políticas sociais, a Europa seria ingovernável. Acontece que, ao contrário do que pensavam os dirigentes políticos, a crise de legitimidade dos anos setenta não tinha desaparecido. Estava apenas dormente e foi reactivada no momento em que a reivindicação das condições para que possa haver governo por consenso foi transferida dos estados nacionais para a UE.
A complexidade da situação reside em que é necessário resolver as duas crises para que a UE possa avançar. Tal como está, nem é legítima aos olhos dos cidadãos, nem é governável aos olhos dos governantes. Em democracia, a resolução da crise de legitimidade é a condição necessária para a resolução da crise de governabilidade. Deve, pois, ter prioridade. Os governantes europeus arriscaram de mais ao realizar um alargamento precipitado, motivado, antes de tudo, pelo objectivo de, com a expansão do mercado único e da união monetária, criar as condições para a diluição do modelo social europeu. Agora estão postos perante a necessidade de ter de refundar o projecto político europeu com base num novo consenso que o torne legítimo. O processo constitucional em curso está ferido de morte e corre o risco de agravar, tanto a crise de legitimidade, como a crise de governabilidade. Sem outra legitimidade não haverá governabilidade.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos